Artigo publicado – O desafio da liberdade de expressão em um mundo conectado: democracia digital sob o prisma da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen

Artigo publicado – O desafio da liberdade de expressão em um mundo conectado: democracia digital sob o prisma da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen

Artigo publicado – O desafio da liberdade de expressão em um mundo conectado: democracia digital sob o prisma da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen

Publicado (Luiz Guedes da Luz Neto em coautoria com o professor Enoque Feitosa Sobreira), intitulado ” O Desafio da Liberdade de Expressão em um mundo conectado: democracia digital sob o prisma da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen” foi publicado no volume 6 da coletânea de Estudos sobre Amartya Sen.

Debateu-se no referido artigo a liberdade de expressão em um mundo cada vez mais conectado e o desafio da manutenção da liberdade de expressão que foi e continua sendo a tônica da rede mundial de computadores.

Vários países discutem a necessidade da expedição de normas jurídicas estatais para garantir a liberdade de expressão. Mas, a edição de leis é o melhor caminho? Essa questão é debatida no artigo a seguir transcrito.

Ao final do texto transcrito, haverá um link para o artigo originalmente publicado.

O DESAFIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM UM MUNDO CONECTADO: DEMOCRACIA DIGITAL SOB O PRISMA DA TEORIA DO DESENVOLVIMENTO DE AMARTYA SEN

Luiz Guedes da Luz Neto[1]

Enoque Feitosa Sobreira[2]

RESUMO

            O valor liberdade é perseguido pelo Homem desde tempos imemoriais, sendo objeto de reflexões filosóficas e jurídicas até os dias atuais. Vários textos constitucionais de nações ocidentais preveem como direito fundamental a liberdade, em suas variadas vertentes. A liberdade de expressão, espécie do gênero liberdade, é um direito fundamental e político de suma importância, pois permite ao cidadão expressar na arena pública as suas ideias e pensamentos.

            A internet contribuiu para a alteração da noção de fronteiras, eliminando limites geográficos e temporais, permitindo a comunicação entre as pessoas e as empresas a qualquer hora do dia e de qualquer ponto do mundo. A rede mundial de computadores foi pensada para não ter controles, o que permitiria, pelo menos em tese, a expressão de pensamentos sem censura prévia.

            Atualmente uma enorme quantidade de pessoas está interconectada através da internet, virtualmente trocando mensagens através de redes sociais e expondo seus pensamentos em blogs. Essa realidade desperta a necessidade de investigação científica sobre o tema. Para tanto, propõe-se o seguinte problema de pesquisa: qual a melhor regulação estatal para garantir, de forma material (substantiva), a liberdade de expressão na internet e, desta forma, a liberdade contribuir para o desenvolvimento do ser humano? Para a resposta ao problema de pesquisa proposto, apresenta-se a hipótese a seguir: para assegurar a liberdade de expressão, o assento constitucional de tal direito é medida suficiente, não devendo haver regulação do exercício desse direito em norma infraconstitucional, pois criar critérios em leis, ou em outros diplomas normativos, gera um risco demasiado de cerceamento da liberdade de expressão. Ou seja, a melhor regulação é a ausência de regulação infraconstitucional.

            Em relação aos objetivos desta pesquisa, serão divididos, de forma metodológica, em duas classes: a) objetivo geral; e b) objetivos específicos. O objetivo geral reside em analisar se existe efetiva e materialmente respeito à liberdade de expressão na rede mundial de computadores. Os objetivos específicos constituem os seguintes: analisar o conceito de liberdade na obra Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen; compreender o significado de democracia no ciberespaço; investigar se existe respeito à liberdade de expressão na internet.

            A metodologia utilizada no presente artigo será a dissertativa-descritiva, com a análise do conceito de liberdade de expressão na obra Desenvolvimento como Liberdade, do teórico Amartya Sen e a sua aplicação ao mundo virtual da rede mundial de computadores.

            Destarte, pode-se concluir que a efetivação da liberdade no ciberespaço é um pressuposto essencial para se assegurar a democracia, pois os indivíduos hoje utilizam a rede mundial de computadores como uma arena pública para o debate político, o debate de ideias, podendo aplicar a pensamento de Amrtya Sen também à esfera cibernética para fundamentar a garantia da liberdade de expressão não apenas no locus tradicional (físico), mas também ao local que ganhou bastante relevo no Século XXI, que é o espaço digital, virtual.

Palavras-chave: liberdade de expressão, democracia, internet, Amartya Sen.

Introdução

            O Homem sempre buscou a liberdade e esta parece ser um valor intrínseco ao ser humano. Porém, esse valor apresentou-se escasso ao longo de toda a história da humanidade, desde a pré-história até os dias atuais. Por muitos séculos o instituto jurídico da escravidão parecia ser o responsável pela privação de liberdade. Os homens e mulheres, na Antiguidade, eram transformados em escravos quer por pertencerem a povos que perderam batalhas e guerras, quer porque eram devedores de quantias em dinheiro.

            Com o passar do tempo, em especial no Ocidente, a escravidão foi abolida de todos os sistemas jurídicos, pois a Humanidade passou a considerá-la intolerável. Apesar disso, muitos aspectos da realidade apontam ainda para uma escassez na liberdade, em especial na liberdade substantiva dos indivíduos. No aspecto formal, diversos ordenamentos jurídicos nacionais declaram que todos são iguais perante a lei. Porém, de forma substantiva a realidade é diversa.

            Com o advento da internet, o mundo parece ter perdido as suas fronteiras, com as pessoas podendo se conectar a outras a qualquer hora do dia e da semana, aparentemente sem limites. Com a rede mundial de computadores nasceu a sensação de liberdade, em especial a liberdade de expressão, pois, aquele indivíduo que não tinha voz nos meios tradicionais de comunicação passou a tê-la na internet, bastando a criação de um site pessoal, blog, ou ter acesso a qualquer uma das diversas comunidades virtuais.

            O movimento de expansão da internet foi bastante rápido, hoje estando potencialmente disponível para todo e qualquer indivíduo do planeta terra, bastando que tenha acesso a um dispositivo capaz de se conectar à internet. Assim, com a conexão à rede mundial de computadores através de um device, a pessoa pode expressar a sua opinião, participando da maior arena pública já criada pelo Homem. Será isso verdade? Essa realidade incita a necessidade de investigação científica por pesquisadores de vários ramos do saber. Dentro de uma abordagem jus-filosófica, propõe-se o seguinte problema de pesquisa: qual a melhor regulação estatal para garantir, de forma material (substantiva), a liberdade de expressão na internet e, desta forma, a liberdade contribuir para o desenvolvimento do ser humano?

            Para a resposta ao problema de pesquisa proposto, apresenta-se a hipótese a seguir: para assegurar a liberdade de expressão, o assento constitucional de tal direito é medida suficiente, não devendo haver regulação do exercício desse direito em norma infraconstitucional, pois criar critérios em leis, ou em outros diplomas normativos, gera um risco demasiado de cerceamento da liberdade de expressão. Ou seja, a melhor regulação é a ausência de regulação infraconstitucional.

            Na busca da verificação da validade da hipótese apresentada, a pesquisa possui o seguinte objetivo geral: analisar se existe efetiva e materialmente respeito à liberdade de expressão na rede mundial de computadores. Quanto aos objetivos específicos, são os seguintes: analisar o conceito de liberdade na obra Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen; compreender o significado de democracia no ciberespaço; investigar se existe respeito à liberdade de expressão na internet.

            A metodologia utilizada no presente artigo será a dissertativa-descritiva, com a análise do conceito de liberdade de expressão na obra Desenvolvimento como Liberdade, do teórico Amartya Sen e a sua aplicação ao mundo virtual da rede mundial de computadores.

            Ao fim e ao cabo desta pesquisa, haverá a verificação da validade do problema de pesquisa proposto.

A Democracia e a liberdade de expressão na Constituição Federal de 1988

            É importante analisar o fundamento constitucional do conceito de liberdade. E, no presente arquivo, o conceito da espécie liberdade de expressão. Assim como os demais países ocidentais, o Brasil inseriu no rol dos direitos fundamentais o direito à liberdade, em especial o da liberdade de expressão.

            Encontra-se no rol do art. 3º, que prevê os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a previsão da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (BRASIL, 1988).

            Ainda no texto constitucional brasileiro, no art. 5º, inciso IV, é “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (BRASIL, 1988). Como decorrência da liberdade de expressão, há a liberdade da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, com previsão no art. 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. Eis o teor do texto constitucional:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

            O outro lado da moeda da liberdade de expressão é o direito de acesso à informação, com previsão constitucional, no art. 5º, XIV, da CF/88, a saber:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

            No Capítulo III, Seção I, da CF/88, art. 206, inciso II, o legislador constitucional inseriu entre os princípios do ensino, o da liberdade de divulgar o pensamento. Mais adiante, no Capítulo V, que abarca a comunicação social, no art. 220, caput, a Carta Magna também previu que a manifestação do pensamento não sofrerá qualquer restrição.

            Conforme visto, o Poder Constituinte originário de 1988 inseriu ao longo do texto constitucional a liberdade de expressão do pensamento como direito e princípio norteadores do agir do Estado brasileiro e dos seus cidadãos e empresas que atuam no território nacional, conferindo relevo constitucional diante da escolha política que atribuiu importância ao valor liberdade.

            Em relação ao termo democracia, importante delimitarmos em qual sentido está sendo emprego no presente estudo, mais especificamente a expressão democracia digital. Essa expressão tem diversos significados e alcance. Pereira da Silva, Cardoso Sampaio e Callai Bragatto (2011, p.17), conceituam da seguinte forma:

O que podemos chamar de “democracia digital” lida com a complexa relação entre tecnologias digitais de comunicação e as práticas democráticas. Também serve para definir um emergente campo de estudo que se consolidou nessas primeiras décadas (também sob a denominação de “e-democracia”, “democracia eletrônica” ou “ciberdemocracia”). Diretrizes governamentais, relatórios de organismos multilaterais, livros e um grande volume de artigos científicos têm sido publicados sobre o tema buscando estabelecer conexões conceituais e práticas, teóricas e empíricas, críticas ou normativas neste campo.

            Assim sendo, no presente artigo adotar-se-á o termo democracia digital como a “complexa relação entre tecnologias digitais de comunicação e as práticas democráticas”. Isto é, o uso das tecnologias digitais (internet, plataformas digitais, computadores, smartphones, entre outros componentes eletrônicos) para uma das práticas democráticas fundamentais: a liberdade de expressão.

Nações Unidas e Liberdade de Expressão na Internet

            A internet não conhece limites geográficos, conectando pessoas e empresas em diversos pontos da terra. Dentro de cada território, o estado soberano aplica as suas leis às empresas que ali exercem atividade. Porém, nem sempre é claro verificar a origem da plataforma digital, necessitando, em tese, de uma atuação internacional para enfrentar os problemas e desafios gerados na rede.

            A Organização das Nações Unidas, em 2011, publicou os princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos. Em 2019 especialistas da ONU fizeram um relatório que alertou que a atuação de governos e de empresas em nome do combate a discursos de ódio e às fakes news está eliminando a liberdade de expressão na internet (NAÇÕES UNIDAS, 2018).

            De acordo com David Kaye, especialista da ONU para direitos humanos, em nome do combate à desinformação e ao discurso de ódio propalados na internet, os “governos estão se movendo rapidamente na direção errada e, frequentemente, apresentam ameaças diretas à liberdade de expressão online” (NAÇÕES UNIDAS, 2018).

            Interessante constatação fez David Kaye acerca do papel regulatório exercido pelas empresas, de âmbito global, assim se manifestando: “As empresas de Internet fornecem um espaço sem precedentes para comunicação e acesso à informação, mas elas também são as reguladoras globais da expressão do nosso tempo” (NAÇÕES UNIDAS, 2018).

            O Conselho de Direitos Humanos da ONU endossou o Guia de Princípios na Resolução 17/4, de 16 de junho de 2011, não tendo o Brasil ainda aderido a esta resolução, de acordo com o sítio eletrônico do Alto Comissariado para Direitos Humanos (OHCHR, 2018).

            De acordo com o Principles on Business and Human Rights, são os seguintes os princípios gerais: a) os Estados têm a obrigação de respeitar, de proteger e de cumprir os direitos humanos e as liberdades fundamentais; b) O papel das empresas comerciais, como órgãos especializados da sociedade que desempenham funções especializadas, é necessário para cumprir todas as leis aplicáveis e para respeitar os direitos humanos; c) A necessidade de corresponder direitos e obrigações aos direitos apropriados e aos remédios eficazes quando violados esses direitos (UNITED NATIONS, 2011, p.1).

            Dos princípios acima transcritos, constata-se que as Nações Unidas elaboraram um rol de princípios (gerais) norteadores para que as empresas e os Estados possam garantir os direitos humanos, em especial a liberdade de expressão na internet.

            Porém, a enumeração de tais princípios parece, de acordo com o relatório do especialista David Kaye, insuficiente, pois, de acordo com o referido relatório, os Estados e as empresas não têm conseguido garantir o direito fundamental da liberdade de expressão na rede mundial de computadores.

            Tudo indica que a elaboração de uma lista de princípios, em normas infraconstitucionais ou infralegais (contratos, termos de adesão de uso etc.), com o objetivo de assegurar a liberdade de expressão, tem gerado um paradoxo. Isto é, quanto mais se regulamenta a proteção da liberdade de expressão, parece que esta sofre mais limitações como consequência da aludida regulamentação.

DO MARCO REGULATÓRIO DA INTERNET NO BRASIL

            O Brasil publicou, em 23 de abril de 2014, a Lei nº 12.965, que estabeleceu os princípios, as garantias, os direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Recebeu essa lei o nome de Marco Civil da Internet. O art. 2º, da Lei nº 12.965/2014, informa que a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento, dentre outros, o respeito à liberdade de expressão.

            O art. 3º do aludido diploma legal elenca os princípios disciplinadores do uso da rede mundial de computadores, explicitando no inciso I a garantia da liberdade de expressão. Mais adiante, ainda na referida lei, o art. 8º deixa expresso que a liberdade de expressão nas comunicações é condição “para o pleno exercício do direito de acesso à internet” (BRASIL, 2014).

            O art. 19 prevê a responsabilidade por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, responsabilizando provedores de aplicações de internet por danos apenas depois de receberem ordem judicial específica para a remoção do conteúdo, não tomarem as providências técnicas ao alcance e dentro do prazo assinado. Tudo isso para garantir a liberdade de expressão e impedir a censura.

            Em todo o texto da Lei nº 12.965/2014, a expressão liberdade de expressão aparece cinco vezes, denotando, assim, a preocupação do legislador infraconstitucional com o direito fundamental previsto na Constituição Federal. Esse é o diploma legal básico que disciplina o uso da internet no Brasil, relativamente recente e que suscitará debates quando da sua aplicação e interpretação pelo Poder Judiciário.

            O anteprojeto que deu origem ao Projeto de Lei nº 2126/2011 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011), originário do Poder Executivo (PLANALTO, 2011), informava, no item 16, que a liberdade de expressão estaria assegurada com o Marco Civil da Internet.

            O marco civil apenas menciona a garantia da liberdade de expressão, mas não especifica de que forma, não estabelece critérios objetivos para tal proteção. Nesse sentido, parece caminhar de forma alinhada ao legislador constitucional, que assegura a liberdade de expressão, mas não informa os critérios para tanto.

            Quanto à liberdade de expressão, tanto a Constituição Federal, quanto o Marco Civil da Internet, são harmônicos na previsão da garantia desse direito individual fundamental. Porém, tal diploma legal é suficiente para a adequada proteção da liberdade de expressão? Esse questionamento remete ao problema de pesquisa proposto neste artigo, para o qual haverá mais adiante a proposta de resposta.

DO CONCEITO DE LIBERDADE COMO DESENVOLVIMENTO EM AMARTYA SEN

            O economista indiano Amartya Sen propôs uma abordagem diferente da costumeiramente até então largamente adotada para mensurar o índice de desenvolvimento de uma nação. Ele propõe ir além da análise do Produto Interno Bruto – PIB do país, índice esse costumeiramente utilizado há muitos anos. Para Amartya Sen, a verificação do desenvolvimento é melhor realizada através da análise da liberdade dos indivíduos, nas várias dimensões da mencionada categoria.

            Na sua obra “Desenvolvimento Como Liberdade”, Amartya Sen (2010, p.55) afirma que tentou, na sua abordagem, visualizar o “desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”. Para a análise da liberdade, Sen considera a expansão da liberdade por dois prismas: a) como fim primordial; b) como principal meio do desenvolvimento (SEN, 2010, p. 55).

            O fim primordial é denominado também de “papel constitutivo”, relacionado “à importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana” (SEN, 2010, p.55). A liberdade como principal meio do desenvolvimento é o aspecto instrumental, ou “papel instrumental”, que “concerne ao modo como diferentes tipos de direitos, oportunidades e intitulamentos[3] contribuem para a expansão da liberdade humana em geral e, assim, para a promoção do desenvolvimento” (SEN, 2010, p. 57).

            Pelos papeis atribuídos por Sen à liberdade, conforme abordado acima, a categoria denominada de liberdade é, ao mesmo tempo, substância (papel constitutivo) e instrumento (papel instrumental). Diante disso, é válido afirmar que a liberdade de expressão é, além de um direito necessário para o desenvolvimento, um poderoso instrumento na luta pelo desenvolvimento através da expansão da liberdade em suas várias conotações. Isto é, a liberdade de expressão é tanto uma liberdade constitutiva que inclui uma capacidade elementar (liberdade de expressar o pensamento sem ser perseguido ou censurado), quanto um instrumental necessário para o exercício da liberdade constitutiva.

            Assim sendo, mister, para a percepção adequada da liberdade como desenvolvimento, a análise das liberdades pelos dois aspectos, o material, ou constitutivo, e o instrumental. Passa-se a analisar a liberdade de expressão através da internet pelos dois aspectos propostos por Amartya Sen.

Da liberdade de expressão na internet

            A internet é uma presença constante na vida das pessoas, quer para uso pessoal, quer profissional e comercial. Difícil encontrar hoje uma atividade humana que não esteja relacionada ao mundo da rede mundial de computadores. Desde uma simples compra de qualquer produto pela internet, quer a realização de um cadastro presencial em algum hotel, alguém estará utilizando o mundo cibernético para concretizar (parte ou totalmente) a operação.

            Com a expansão das redes sociais, o espaço cibernético tornou-se um foro de debate público, no qual as pessoas expressam as suas opiniões políticas, formam comunidades virtuais com pessoas que detém pensamento semelhante, mobilizam pessoas para atos públicos tanto no mundo virtual quanto no real.

            Ao mesmo tempo em que se tornou um espaço para manifestação do pensamento, a internet virou um repositório dos pensamentos dessas pessoas, que pode ser acessado a qualquer momento por outras pessoas, por empresas e por governos. Isto é, tornou-se um grande arquivo público das publicações dos pensamentos de pessoas e grupos, ficando, desta forma, sujeitos, em tese, a um maior controle por parte das agências governamentais e das empresas.

            Limitando-se o presente artigo ao aspecto da liberdade de expressão dos pensamentos das pessoas no ambiente virtual, apresenta-se o seguinte problema de pesquisa: qual a melhor regulação estatal para garantir, de forma material (substantiva), a liberdade de expressão na internet e, desta forma, a liberdade possa contribuir para o desenvolvimento do ser humano?

            A rede mundial de computadores, quando foi concebida, foi desenhada para ser um território livre, no qual a informação circularia livremente entre as pessoas, sem limites geográficos e sem filtro ideológico. Porém, ao longo do tempo, várias normas jurídicas foram criadas por diversos países e por blocos econômicos no intuito de proteção dos dados pessoais, das empresas e dos governos, sob a justificativa de combate aos crimes cibernéticos e ao terrorismo.

            As eleições presidenciais nos Estados Unidos da América, no ano de 2016, trouxeram à tona a questão das fakes news, que, de acordo com alguns especialistas, teria influenciado no resultado das eleições. O mesmo debate surgiu em 2018, nas eleições presidenciais no Brasil, e essa temática parece presente em outros pontos do planeta.

            O combate proposto das fakes news traz um preocupante potencial limitador da liberdade de expressão, o que pode gerar danos irremediáveis ao direito inalienável e fundamental das pessoas de se expressarem livremente na internet.

            Um outro exemplo de regulação que tem impacto direto na liberdade de expressão é a Diretiva de Direitos Autorais do Parlamento Europeu.

            A União Europeia aprovou, em 12 de setembro de 2018, o documento sobre a Diretiva de Direitos Autorais do Parlamento Europeu, no qual pretende aquele bloco a proteção dos direitos autorais. A justificativa para a limitação da liberdade na internet dos usuários europeus é a proteção dos direitos autorais, porém, as normas ali contidas têm potencial para limitar, sem precedentes no ocidente, a liberdade de expressão previamente, isto é, antes do material ser inserido em sites e redes sociais.

            O artigo 13 da Diretiva de Direitos Autorais do Parlamento Europeu prevê que a plataforma que hospedar conteúdo que contenha áudio e/ou elementos visuais que não sejam de propriedade (ou que este tenha licença de uso) do produtor do vídeo, responderá por violação aos direitos autorais, podendo, inclusive, ser demandada judicialmente. Esse tipo de regulamentação, sob o fundamento de proteção do direito autoral, pode, na prática, ser um instrumento de censura prévia dos conteúdos a serem disponibilizados na internet.

            Hoje é cada vez mais presente a tensão entre a liberdade de expressão na internet e a denominada segurança pública, entre a liberdade de expressão e o combate às fake news, e a liberdade de expressão e o combate ao terrorismo.

            As externalidades criadas pelas regulações jurídicas têm sido potencialmente mais negativas do que positivas, em especial em relação à liberdade de expressão, pois, a exemplo da Diretiva de Direitos Autorais do Parlamento Europeu, gera responsabilidade por danos ao direito autoral para terceiros, ou seja, para as plataformas que hospedam material criado por seus clientes, que são os produtores do conteúdo hospedado e disponibilizado na plataforma digital. Essa possibilidade de responsabilização gerará censura prévia, pois, na dúvida, a empresa que hospeda o conteúdo preferirá proibir o upload e a divulgação do material potencialmente suspeito de infringir a diretiva de direitos autorais.

            Assim sendo, constata-se que toda regulamentação sobre a liberdade de expressão no meio cibernético afirma que foi pensada e elaborada no sentido de assegurar tal liberdade da forma mais ampla possível, preocupando-se com o excesso no exercício da liberdade de expressão ou no uso ilícito de tal liberdade por grupos criminosos ou terroristas. Qualquer critério de classificação de excesso no exercício da liberdade de expressão traz consigo uma arbitrariedade capaz de, na prática, ir além do combate ao excesso, restringindo, portanto, o próprio exercício da liberdade de expressão.

            E a previsão de critérios prévios, mesmos que objetivos, dispostos em diplomas legais ou infralegais, ao invés de servir como instrumento para a salvaguarda da liberdade de expressão, através do papel instrumental da liberdade, de acordo com a classificação apresentada por Amartya Sen, funciona de forma inversa, como catalisador de cerceamento da referida liberdade. E, servindo como limitador da liberdade de expressão a regulamentação legal ou infralegal, atinge a liberdade pelo aspecto constitutivo.

Conclusão

            Verificou-se que a Constituição Federal brasileira consagra o princípio da liberdade de expressão em vários momentos do seu texto. E essa liberdade de expressão deve ser garantida tanto no mundo físico, quanto no virtual, pois a democracia pode ser exercitada, com o advento da internet, também no mundo cibernético.

            Diante da importância, para os direitos humanos, da liberdade de expressão na internet, as Nações Unidas elaboraram um conjunto de princípios para orientar Estados, pessoas e empresas nessa complexa interação com a finalidade de assegurar a liberdade de expressão, tão importante para a democracia.

            As pessoas estão cada vez mais conectadas, passando várias horas dos seus dias navegando pelas páginas eletrônicas, divulgando ideias, interagindo, fazendo pesquisas e negócios. Difícil imaginar a vida de alguém hoje sem o uso da internet. Diante do aumento das horas de conexão, bem como com a evolução dos dispositivos eletrônicos que permitem a conexão de praticamente qualquer lugar e a qualquer momento, natural que as pessoas transferissem para o meio cibernético o foro de debates de ideias, do debate político, pois as pessoas perceberam que virtualmente era possível alcançar pessoas em qualquer ponto do planeta.

            Diante dessa possibilidade de divulgação das ideias através da internet, de forma paralela aos meios tradicionais de difusão de informação (rádio, televisão, jornais, revistas etc.), em tese com maior liberdade de atuação, vários organismos públicos e privados, sob o pretexto de proteção da intimidade, da privacidade, dos direitos autorais, do combate a violências, empreendem movimentos de regulação do uso da internet. A rede mundial de computadores, que foi concebida para ser um local livre, começou a sofrer limitações, quer através da atuação privada de empresas de internet, quer através do aparato estatal, através da expedição de regulamentos jurídicos.

            Constatou-se que no sistema constitucional brasileiro, a norma que garante a liberdade de expressão é de aplicação imediata, não sendo, portanto, norma de eficácia limitada, ou seja, sua eficácia não está condicionada à edição de norma infraconstitucional, passando a ter eficácia e vigência com a promulgação da Carta Magna.

            O problema de pesquisa abordado neste estudo é o seguinte: qual a melhor regulação estatal para garantir, de forma material (substantiva), a liberdade de expressão na internet e, desta forma, a liberdade contribuir para o desenvolvimento do ser humano?

            Pela análise empreendida, confirmou-se a hipótese apresentada, que é a seguinte: para assegurar a liberdade de expressão, o assento constitucional de tal direito é medida suficiente, não devendo haver regulação do exercício desse direito em norma infraconstitucional, pois criar critérios em leis, ou em outros diplomas normativos, gera um risco demasiado de cerceamento da liberdade de expressão. Ou seja, a melhor regulação é a ausência de regulação infraconstitucional.

            Para a realização da pesquisa que resultou na ratificação da hipótese acima mencionada, propôs-se o objetivo geral a seguir: analisar se existe efetiva e materialmente respeito à liberdade de expressão na rede mundial de computadores. Quanto aos objetivos específicos, os seguintes foram propostos: analisar o conceito de liberdade na obra Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen; compreender o significado de democracia no ciberespaço; investigar se existe respeito à liberdade de expressão na internet.

            Desta forma, pode-se concluir que todas as evidências normativas e empíricas estudadas apontam no sentido de que os esforços de regulação da liberdade de expressão trazem consigo um risco de diminuição desta liberdade, pois, mesmo que haja critérios objetivos na norma reguladora, a interpretação dessa norma pelo aplicador estará sujeita a certo grau de discricionariedade, podendo, na prática, resultar em uma diminuição do direito fundamental de liberdade de expressão de pessoas e empresas, o que não é o desejado por ninguém, em especial em um estado democrático.

            Assim sendo, constatou-se que manter a regulação do direito de liberdade de expressão no texto constitucional, sem a necessidade de sua regulamentação através de dispositivos infraconstitucionais, é a forma mais segura para assegurar o exercício mais amplo da liberdade de expressão, deixando a cargo do Poder Judiciário a resolução de eventuais conflitos que surjam do exercício do referido direito constitucional, analisando-se caso a caso. Regulamentar de forma pormenorizada, além da previsão constitucional, em sede infraconstitucional, de forma geral e irrestrita, tem potencial para resultar em uma censura prévia, o que não é compatível com a democracia.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

_______. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>>. Acesso em: 05 de outubro de 2019.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2126/2011. Disponível em: <<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=517255>>. Acesso em: 05 de outubro de 2019.

NAÇÕES UNIDAS. Relator da ONU pede que governos e empresas garantam liberdade de expressão na Internet. Disponível em: <<https://nacoesunidas.org/relator-da-onu-pede-que-governos-e-empresas-garantam-liberdade-de-expressao-na-internet/>>. Acesso em: 01/09/2019.

OHCHR. 2018 thematic report to the Human Rights Council on content regulation. Disponível em: << https://www.ohchr.org/EN/Issues/FreedomOpinion/Pages/ContentRegulation.aspx>>. Acesso em 01/09/2019.

PEREIRA DA SILVA, Sivaldo; CALLAI BRAGATTO, Rachel; CARDOSO SAMPAIO, Rafael. Democracia digital, comunicação política e redes : teoria e prática. Rio de Janeiro : Folio Digital: Letra e Imagem, 2016.

PLANALTO. EMI Nº 00086 – MJ/MP/MCT/MC. Disponível em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/EMI/2011/86-MJ%20MP%20MCT%20MC.htm>>. Acesso em 05 de outubro de 2019.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

UNITED NATIONS. GUIDING PRINCIPLES ON BUSINESS AND HUMAN RIGHTS. New York and Geneva : United Nations, 2011.


[1] Advogado, Mestre em Direito Econômico pela UFPB, Doutorando em Direito Humanos e Desenvolvimento na UFPB, e-mail: prof.luizguedes@gmail.com

[2] Professor Associado no Curso de Direito da UFPB, Doutor em Direito pela UFPE e em Filosofia pela UFPB, Mestre em direito pela UFPE, e-mail: enoque.feitosa.sobreira@gmail.com

[3] De acordo com o tradutor do livro, a palavra inglesa utilizada no original é entitlement, e, de acordo com o emprego utilizado pelo autor da obra, significa, em linhas gerais, aquilo que a lei garante e apoia.

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