Democracia em tempo de pandemia
Democracia em tempo de pandemia
A Constituição Federal (art. 1º, caput) afirma que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de direito. E isso deveria significar que o estado/nação deveria pautar as suas ações dentro dos ditames democráticos, com leis e atos normativos que respeitem tais princípios.
De acordo com o ditado “não há um mal que não traga um bem”, a pandemia serviu para demonstrar, sem sombra de dúvidas, que os políticos brasileiros, em sua grande maioria, não representam o povo. Ou seja, o povo não é o mandatário dos governantes. Tudo indica que estes agem em “nome do povo”, porém em favor próprio e dos grupos que os cercam.
Após quase um ano da decretação do estado de calamidade no Brasil, vários estados brasileiros estão decretando toque de recolher, isso depois de passarmos pelas eleições para prefeito e vereador em novembro de 2020 sem restrições de movimentações, pois parece que a “ciência” dos governantes afirmava que não haveria contagio nesse período.
Eis os estados nordestinos que decretaram toque de recolher entre 22h e 5 horas (o vírus só circula nesse horário?) até o momento em 2021: Paraíba (PSB), Bahia (PT), Ceará (PT), Pernambuco (PSB). De acordo com os decretos estaduais, nas cidades que forem classificadas nas bandeiras laranja e vermelha. Vários municípios desses estados seguiram no mesmo caminho.
Esses decretos que prevêm toque de recolher são constitucionais? Pode-se formular a pergunta da seguinte forma também: os estados têm competência constitucional para decretar toque de recolher?
De acordo com o sistema constitucional brasileiro, os estados e municípios não têm competência para a decretação de toques de recolher. Essa medida excepcional só pode ser adotada em estado de sítio ou em estado de defesa, os quais só podem ser decretados pelo presidente da república, com a aprovação do estado de defesa ou autorização do estado de sítio pelo Congresso Nacional (competência exclusiva) (art. 49, inciso IV, da CF/88)[1].
Assim sendo, decretação de toque de recolher pelos estados e municípios é inconstitucional, cabendo ao Ministério Público, como defensor dos interesses da sociedade, tomar as medidas necessárias para a declaração da inconstitucionalidade de tais decretos junto ao Judiciário, inclusive requerendo medida liminar de urgência para a sustação imediata dos efeitos dos referidos decretos. Espera-se que o Ministério Público exerça o seu dever constitucional.
Os governadores dos estados nordestinos acima mencionados afirmam (curiosamente de forma uníssona e sincronizada) que as medidas adotadas foram tomadas com base na ciência. Interessante essa afirmação, pois não demonstram nenhum dado (muito menos dado sólido e confiável) que pudesse confirmar a hipótese defendida por eles.
A restrição de locomoção dos cidadãos é algo gravíssimo, só permitida/admitida em estado de sítio ou de defesa. A condição necessária para a decretação do estado de sítio é a autorização do Congresso Nacional e para o estado de defesa a aprovação do Legislativo Federal, conforme visto acima. Assim, somente a União Federal pode decretar o estado de sítio ou de defesa, não tendo essa competência constitucional os demais entes federativos.
Os estados e municípios brasileiros não poderiam decretar toque de recolher mesmo se houvesse comprovação idônea da eficácia de tal medida no combate ao COVID-19, pois tal competência é do presidente da república se preenchidos os requisitos constitucionais para tanto.
Em relação à eficácia do toque de recolher no combate ao COVID-19, há mais indícios da sua ineficácia do que da sua eficácia. Isso mesmo que você está lendo. Pesquisadores sérios afirmam que não é possível estabelecer a correlação entre toque de recolher e redução de contaminações, de acordo com Michéle Legeas, professora da Escola de Altos Estudos em Saúde Pública da França.
O que causa espanto é encontrar no meio jurídico profissionais que defendem a adoção do toque de recolher como medida de prevenção contra a COVID-19, mesmo quando se está clara a inconstitucionalidade da medida. Esses profissionais, ou se esqueceram das regras básicas de hermenêutica jurídica, ou pensam que podem interpretar as normas jurídicas (constitucional e infraconstitucional) de acordo com os seus desejos privados ou de grupo. Lamentável isso.
Tudo indica que a população (povo) foi totalmente subjugada pelo medo implantando em suas mentes ao longo dos últimos onze meses pelos governantes em parceria com os meios de comunicação. Com isso, parece que não esboçará qualquer tipo de reação concreta (gostaria de estar enganado nesse ponto) e nas ruas contra essa medida arbitrária e inconstitucional, que mais se aproxima de regime ditatorial do que democrático.
Se o Brasil ainda for um país democrático, decretos que imponham toque de recolher são inconstitucionais. Até crianças que aprenderam a ler há pouco tempo conseguem entender isso.
Os governadores e prefeitos que decretaram toque de recolher ou estão mal assessorados, ou pensam que estão acima da Constituição Federal. Independente do motivo para a decretação do toque de recolher, essa medida é inconstitucional e deveria ser revogada pelos governadores e prefeitos (o que não irá acontecer), ou deveria o Ministério Público ingressar com as medidas judiciais cabíveis para a declaração de inconstitucionalidade bem como processar os gestores públicos (governadores e prefeitos) pela adoção de medidas claramente inconstitucionais/ilegais (art. 11, I, da Lei nº 8.429/1992, em tese, entre outras possíveis capitulações no ordenamento jurídico)[2]. Aguardemos o desenrolar dessa lamentável história.
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[1] Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
[…]IV – aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;
[2] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
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