Energia elétrica | Qual a qualidade da intervenção do estado brasileiro na economia?
O estado possui diversos instrumentos jurídicos para intervir na economia, quer como empresário (através de estatais, ex.: bancos públicos, petroleiras etc.), quer como regulador. Independente da forma como ele intervém, interfere no mercado gerando externalidades positivas e negativas.
Neste artigo utilizo dados da FGV Energia para subsidiar meus argumentos jurídicos acerca da cultura regulatória predominante no Brasil. E essa cultura é antiga e, apesar dos diversos exemplos empíricos dos seus efeitos negativos, ainda é predominante na academia e na política brasileiras.
O momento atual, tanto no Brasil quanto no mundo, exige que todos repensemos o modo pelo qual o estado continua a intervir na economia. Pois paradigmas que resultam na preponderância de externalidades negativas devem ser ressacados com ênfase, sob pena de transferir para a sociedade um ônus oriundo de uma regulação imprudente e ineficiente.
Para tanto, escreverei sobre um caso recente de regulação que atinge até o presente momento (janeiro de 2019) toda a sociedade brasileira.
Conforme dito, um caso relativamente recente merece ser lembrado, pois todos nós sofremos os efeitos da intervenção estatal até o presente momento. Refiro-me à Medida Provisória nº 579, de 11 de setembro de 2012. Um dos “fundamentos” externos da medida provisória em comento foi a “visão social”, pois a redução do preço da energia elétrica iria beneficiar os consumidores, em especial aqueles de baixa renda.
Para regulamentar a MP 579/2012, foi publicado o Decreto 7.805, de 14 de setembro de 2012, que, além de regulamentar a mencionada medida provisória, trouxe medidas complementares. E esse arcabouço legal resultou em uma redução média de 20,2% para os consumidores.
Vale lembrar que naquele momento histórico o crescimento do setor industrial vinha registrando queda, e o custo a energia elétrica, um dos principais insumos, era motivo de preocupação.
A diminuição no custo da energia elétrica seria resultado de três medidas, conforme lembrado pelo estudo FGV Energia (p. 2), a saber:
(i) a desoneração de alguns dos encargos setoriais; (ii) a antecipação da prorrogação das concessões de geração, transmissão e distribuição anteriores à Lei nº 8.987, de 1995, que venceriam a partir de 2015; e (iii) o aporte de R$ 3,3 bilhões anuais pela União à Conta do Desenvolvimento Energético (CDE).
Porém, o governo no momento da expedição da MP 579/2012, não apurou, ou preferiu não visualizar os custos reais das medidas de desoneração do preço da energia elétrica para o consumidor final. Houve um enorme descompasso entre o custo de produção, o custo de distribuição e o preço da energia vendida para o consumidor. E essa diferença precisava vir de algum lugar. E de onde veio? O recurso veio do Tesouro Nacional da seguinte forma: em 2013 o aporte foi de R$3,3 bilhões do Tesouro Nacional para a conta a Conta do Desenvolvimento Energético – CDE; em 2014 o aporte para a CDE foi de R$3,6 bilhões.
Interessante observar que em 2013 o Tesouro antecipou receitas futuras oriundas do financiamento da construção da usina hidrelétrica de Itaipu da ordem de R$ 3,9 bilhões, repassando esse valor à CDE. Depois de diversas críticas, como informado no estudo FGV Energia, o governo mudou a estratégia contábil e passou a emitir títulos públicos (ou seja, endividou-se) para financiar a CDE, valores esses que serviriam para parar o custo das usinas termelétricas e passou a contabilizar tal endividamento como gasto primário.
Transcrevo tabela encontrada no estudo FGV Energia sobre o impacto tarifário das medidas adotadas pela MP 579/2012:
Outro aspecto contido na mencionada medida provisória era a antecipação da renovação das concessões. As concessionárias que aceitassem a proposta firmariam contratos por prazo de 30 (trinta) anos. A recontratação a preços mais baixos permitira em tese que o consumidor se beneficiasse da diferença de preços entre os contratos antigos e os novos. O impacto esperado está resumido na tabela abaixo:
O somatório das duas medidas acima informadas resultaria na redução média de 20,2% de redução anunciados pelo governo de então.
No intervalo entre a publicação da MP 579/2012 e a sua conversão na Lei nº 12.783/2013, houve vários questionamentos dos agentes, pois o texto da medida provisória gerava diversas inseguranças jurídicas, em especial quanto ao critério de indenização dos ativos não depreciados, somando-se a isso a pouca transparência com que o processo foi conduzido. Transparência que infelizmente ainda não é comum às três esferas governamengais.
As concessionárias de capital aberto, através de seus acionistas, não aderiram à proposta governamental, já que os números apresentados pelo governo ficaram bem aquém do esperado pelas empresas, e a adesão na geração ficou em torno de 60% do volume inicialmente previsto governo brasileiro.
Como resultado da adesão inferior ao esperado pelo governo brasileiro, bem como ao fato da escassez de chuvas no período, que elevou o Custo Marginal de Operação – CMO, resultando no aumento da geração termelétrica despachada por ordem de mérito de custo, teve como resultado aumento do preço praticado no mercado de curto prazo. E, aquelas distribuidoras que estavam subcontratadas e tiveram de comprar energia no mercado livre, acabaram comprando essa energia por um preço maior, denominado de PLD – preço de liquidação das diferenças.
Isso resultou em um problema de fluxo de caixa para as distribuidoras, pois só poderiam repassar o aumento do custo da compra da eletricidade no mercado de curto prazo aos consumidores finais no reajuste anual.
Além de gerar enormes problemas de fluxo de caixa para as distribuidoras, a MP 579/2012 forçou o governo a desembolsar um valor adicional de R$ 5,1 bilhões para compensar a não adesão à prorrogação da concessão de geração.
Constata-se, com a análise do problema gerado pela regulação de péssima qualidade (alguns chamam de regulação com finalidade populista), que houve uma sucessão de erros para tentar manter a redução do custo da energia elétrica para o consumidor final em torno de 20,2%.
Os números facilitam bastante a compreensão da gravidade da questão. Por isso, transcrevo, ainda da análise FGV Energia, a movimentação Conta de Desenvolvimento Energético do ano de 2013:
Em 2014 o problema continuou e o governo apresentou uma “solução” para o problema financeiro, após o socorro de R$ 1,2 bilhão às distribuidoras:
(i) Aporte de R$ 4 bilhões pelo Tesouro na CDE. Esse recurso virá via extensão do Refis (Refinanciamento de dívidas com o fisco) ou de aumento de impostos; e
(ii) Financiamento de mercado através da CCEE, que irá a bancos públicos e privados para conseguir empréstimos de até R$ 8 bilhões a juros de mercado. Os empréstimos serão realizados mês a mês conforme a necessidade das distribuidoras e serão oferecidas garantias regulatórias aos bancos: parte da tarifa será reservada para pagar a conta. Além disso, será criado um fundo para dividir entre as distribuidoras uma eventual inadimplência de alguma delas.
Em 2015 entrou em vigor o sistema de bandeiras tarifárias, que vigora até o presente momento. Com essas bandeiras tarifárias, a intenção era forçar o consumidor a consumir menor diante da elevação do custo da energia elétrica.
As externalidades negativas são evidentes na malfadada MP 579/2012, que precisa servir de estudo de caso para que outras regulações setoriais desse tipo não se repitam no Brasil. Os números são bastante claros e demonstram, sem a menor dúvida, a imposição de custo irrazoável ao consumidor (quer consumidores residenciais, comerciais ou industriais), o que impacta negativamente na possibilidade de recuperação econômica do Brasil como um todo, pois a energia elétrica é um insumo fundamental para a confecção de produtos e na prestação de diversos serviços, pois está inserida em qualquer processo produtivo.
E outro aspecto precisa também ser ressaltado. O custo dessa regulação ineficiente será pago pelo consumidor, que também é contribuinte, pois não se pode esquecer do endividamento do Tesouro Nacional a partir de 2013 para fazer frente à promessa populista da redução média de 20,2% nas contas de energia elétrica.
O site Gazeta do Povo, ouvindo especialistas, traz um quadro interessantíssimos para a compreensão da herança oriunda da MP 579/2012:
“Confira alguns dos principais custos decorrentes da MP 579
Até agora, as indenizações somam cerca de R$ 50 bilhões, R$ 37,9 bilhões da Transmissão e R$ 12 bilhões para as geradoras. Pela proposta original da MP 579, os ativos de transmissão anteriores ao ano 2000 não seriam indenizados, mas o governo voltou atrás e decidiu compensar as transmissoras. O acordo prevê que as empresas enviem ao governo laudos técnicos com estimativas do valor a ser indenizado. A ANEEL ainda não aprovou os Laudos de Avaliação das concessionárias CEEE GT, COPEL GT, CELG GT e há recurso administrativo sobre o valor da CTEEP. No entanto, os valores já aprovados somam R$ 20 bilhões, mas o saldo das reivindicações dessas empresas é de R$ 25 bilhões.
No total, foram três empréstimos feitos com oito bancos por meio da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Em 2014 foram 17,8 bilhões divididos em duas etapas (R$ 11,2 bilhões e R$ 6,6 bilhões). Em 2015 foram aportados mais 3,4 bilhões. Colocando o valor aos juros acumulados durante o período de amortização dos empréstimos (até 2020) o total chega a R$ 39,1 bilhões, valor que passou a ser pago em 2015, por meio de encargos nas tarifas de energia. Esses recursos foram usados para cobrir a exposição involuntária das companhias ao mercado à vista, onde o preço da energia estava alto em função do elevado despacho térmico.
Trata-se do custo do chamado “déficit hídrico” (diferença entre a energia que as hidrelétricas geraram e o que elas deveriam ter produzido para atender seus contratos) medido pelo GSF (Generation Scaling Sactor). Diante da falta de chuvas, as empresas tiveram de comprar energia mais cara no mercado à vista, gerando um rombo bilionário que se acumula desde 2014. A conta ultrapassou aos R$ 20 bilhões em 2015, quando foi editada a MP 688 que faz uma repactuação do risco hidrológico e prorroga as concessões hidrelétricas para compensar o prejuízo.
Para ajudar a bancar a redução de 20% das tarifas, o governo prometeu uma contrapartida em aportes do Tesouro. Foram R$ 10 em 2014 e mais R$ 10 em 2015. Esse valor foi aportado a fundo perdido. Este custo não foi repassado ás tarifas de energia, mas ficou na conta no pagador de impostos.
Previsto para seis de novembro, o leilão das 29 hidrelétricas que não participaram da renovação das concessões em 2013 projetava uma redução de 82% na tarifa média dessas usinas, o que traria um alívio de R$ 6 bilhões na conta de luz dos brasileiros. Mas o governo mudou as regras do certame e, além de aplicar uma tarifa mais elevada, vai cobrar das empresas vencedoras uma bonificação de outorga de R$ 17 bilhões, algo inédito desde a remodelação do setor, em 2004. O valor deve ser diluído na tarifa dos consumidores”
Consoante o site Canal Energia, os consumidores brasileiros pagarão a conta oriunda da regulação equivocada até o ano de 2024, com peso maior para o setor industrial, já que entrará como despesa (os empréstimos negociados pelo governo com bancos públicos e privados para a cobertura dos custos adicionais das distribuidoras com compra de energia) na Conta de Desenvolvimento Energético – CDE.
O caso da MP 579/2012 é paradigmático quando o assunto é o efeito da regulação sobre a sociedade, mormente quando ela é utilizada ao arrepio dos critérios técnicos e capturada por interesses de determinado grupo, quer político quer econômico. Interesse desse grupo (ou desses grupos) que, para angariar a simpatia da sociedade, apresentou uma justificativa falaciosa, qual seja, a diminuição do custo da energia elétrica, em especial para aqueles mais carentes.
Porém, não se analisou na época, ou esse estudo não foi divulgado à população, o custo efetivo para todos os envolvidos, quer o consumidor industrial que utiliza a energia elétrica como insumo, quer o consumidor final. O resultado, conforme dito acima, foi o aumento nas contas de energia elétrica, cuja população e setor produtivo pagarão o custo dessa malfadada regulação até 2024.
Diante desse exemplo, espero que o Estado brasileiro tenha aprendido algo sobre regulação. Esta não pode ser feita para atender a anseios populistas, ou de determinados grupos, esquecendo-se do critério técnico, que deveria preponderar. A junção do critério técnico e a busca do real bem comum deveria nortear as regulações. Essa cultura precisa ser efetivamente implementada no Brasil, caso contrário outros exemplos de regulação desse naipe serão implementados no país, em detrimento da população e do desenvolvimento sustentável da nação.
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