Nelson Rodrigues, as doenças respiratórias e as aglomerações.
Enquanto há jornalistas chatos, sem graça e fanáticos pela covid-19, que se incomodam por causa de um suposto desdém à peste chinesa, Nelson Rodrigues, grande jornalista e dramaturgo, ele mesmo vítima de graves doenças respiratórias e que se autointitulava o “Reacionário”, escrevia assim sobre esses males:
“Antes de falar de João Guimarães Rosa, quero dizer ainda duas palavras sobre o velho Rio. (Em nosso idioma, duas palavras são duzentas). O brasileiro cospe menos, diria eu. Quanto às nossas mulheres, nem cospem. Mas, no tempo do fraque e do espartilho, a cidade expectorava muito mais. Lembro-me de antigas bronquites, de tosses longínquas, asmas nostálgicas. Nas salas de belle èpoque era obrigatória essa figura ornamental: — a escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo (e pétalas coloridas).”
Sobre a primeira vez em que foi ao cinema no Rio de Janeiro, em
1916, Nelson fez o seguinte relato:
“(…) quando apagou a luz, nasceu na treva uma misteriosa e tristíssima fauna de tosses”.
Ainda que fosse num momento de alegria como num nascimento ou de tristeza, como um velório, alguma síndrome respiratória estava presente:
“Parto em casa, velório em casa, escarradeira na sala, bronquite das tias…”
A escarradeira era o artefato mais importante, não máscaras e a vida seguia normalmente seu curso.
A convivência das pessoas com as doenças respiratórias era algo aceitável.
Continuava o “Reacionário”:
“Mas, falo, falo, e ainda não disse uma palavra sobre a grande tosse. Estou enfatizando de caso pensado. Em nossa época, o brasileiro tosse menos. Há menos bronquite, menos asma, menos tuberculose e, até, menos pigarro. O doente moderno pode ter o pulmão constelado de cavernas e sem tossir (que eu lembre, o único brasileiro que tosse é o João Saldanha)”.
E como estamos em época de carnaval e de proibição de aglomerações, nada mais alegre do que lembrar Nelson Rodrigues e João Saldanha, o João-sem-medo, recebendo, no programa do Chacrinha, uma premiação.
Contou Nelson Rodrigues:
“Outro dia, fui ao Chacrinha. Comigo ia o João Saldanha. O programa elegera, a mim, o maior cronista esportivo de jornal e, ao João, o maior comentarista de TV. (E tínhamos ambos um ar de prêmio Nobel.) Pois bem, e nunca vi multidão tamanha (…)
Duas mil pessoas num espaço que daria para quinhentas. (E como o Chacrinha é amado pelo auditório e, repito, ferozmente amado) Aquela massa faria, por amor, o que ele dissesse…”
Escarradeiras com flores desenhadas, asmas nostálgicas, tosses longínquas, convivência corajosa com doenças respiratórias, jornalistas do calibre de Nelson Rodrigues e João Saldanha, e o “Velho guerreiro” comandando uma massa de duas mil pessoas num lugar que daria para quinhentas!
Sim, o brasileiro era mais corajoso e divertido, enfrentava as doenças e as mortes com mais destemor e fazia mais piadas com as desgraças, trazia consigo facilmente a sanidade que Chesterton dizia existir numa pessoa normal: “a tragédia no coração e a comédia na cabeça”.
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