O Brasil é um país interessante. Instituições parecem se digladiar diariamente. O Ministério Público Federal promove investigações e propõe ações penais públicas contra autoridades ou ex-autoridades dos diversos escalões da República. Algumas ações judiciais de interesse nacional permanecem em sigilo, o que impede o acesso dos cidadãos às informações contidas nos autos.
Ontem (15/02/2017), nós, brasileiros, fomos surpreendidos com a notícia do protocolo de uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC, de autoria do Senador Romero Jucá (PMDB – RR), que assegurará, caso aprovada pelo Legislativo federal, imunidade relativa aos ocupantes da linha sucessória da Presidência da República.
Apesar de pesquisar, não encontrei, até agora, disponível no sítio eletrônico do Senado, a aludida PEC. Há informações de que o Senador Romero Jucá teria desistido da proposição da supramencionada PEC. Independente disso, interessante uma leitura do teor da PEC, pois modificações legislativas têm seus efeitos suportados pelos cidadãos, mormente os de uma emenda constitucional.
De acordo com alguns sites eletrônicos de notícias, a mencionada PEC teria o seguinte texto: “os possíveis sucessores do presidente da República não poderão ser responsabilizados ‘por atos estranhos ao exercício de suas funções durante a vigência do respectivo mandato ou enquanto ocupar o correspondente cargo’” (http://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2017/02/juca-apresenta-pec-que-da-imunidade-cargos-na-linha-sucessoria-da-presidencia.html).
Além disso, prevê (ou previa, a confirmar a retirada da proposta), como regra, a impossibilidade de prisão dos sucessores do presidente da República. Mais detalhe deste ponto só depois que conseguir ter acesso ao texto no sítio eletrônico do Senado, ou em alguma outra página confiável.
Lendo notícia da PEC da sucessão presidencial (esse nome não tem caráter oficial, pois atribuído por mim neste texto), lembrei-me do livro “Os donos do poder”, de Raimundo Faoro, no qual ele faz uma análise história do nosso país, trazendo dados anteriores ao nosso descobrimento por Portugal, passando por nosso período colonial, a independência do Brasil até o período republicano, mostrando as estruturas de poder instaladas em nossa nação. Essas estruturas parecem perdurar até os dias atuais. Raimundo Faoro, na mencionada obra, assim apresentava argumentos para explicar a realidade política brasileira:
A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assinta no tradicionalismo – assim é porque sempre foi (FAORO, 2001, p.865).
Na última parte do seu livro, ele traça uma linha história que vinha da compreensão dos nossos colonizadores até o momento histórico de Getúlio Vargas. Tudo indica que essas estruturas perduram até hoje, desenvolvendo as suas atividades político-econômicas de acordo com a dinâmica exposta por Faoro.
Ainda no mesmo livro, afirma ele em relação ao poder, que apenas nominalmente emanava do povo, o seguinte:
O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensados da justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou (FAORO, 2001, p. 885).
Dessa “conversa” com Faoro, pude perceber que os fatos históricos atuais também parecem apontar no mesmo sentido do constatado por ele, isto é, o dono do poder não era e não é o povo, mas sim um estamento político que transformou o nosso sistema de produção em um paracapitalismo, no qual a comunidade política “supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois”, garantindo a manutenção do sistema, enquanto o povo, que só “detém” o poder de forma nominal, presente apenas no texto da lei como retórica, queda-se diante de tudo isso.
A comunidade política, como príncipes de antanho, parece julgar-se dispensada da responsabilidade advinda da lei. Melhor dizendo, a lei, como vontade da soberania popular, não existe, pois o povo, na verdade, não é detentor do poder soberano. Talvez por essa razão, surjam propostas de emenda constitucional da mesma substância da apresentada ontem no Senado e noticiada na mídia.
Será que um dia o povo sairá do status de palavra para o de realidade, e passará a se interessar pela lei, exigindo a participação na eleição com opções que ele formulou, passando a eleição de apenas formalmente livre para também materialmente livre? O tempo talvez nos apresente uma resposta a essa questão.
Referência FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 3ª edição revista, 2001.
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