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A Suprema Corte brasileira é livre para decidir como quiser ?

A Suprema Corte brasileira é livre para decidir como quiser ?

            Nos últimos dias tem se falado muito sobre a ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, que está em andamento no Supremo Tribunal Federal – STF.

            A ADI 6524 está sendo julgada no Plenário Virtual, tendo início a sessão no dia 04/12/2020 e término em 11/12/2020. Até a presente data (06/12/2020), dos 11 ministros, quatro votaram.

            Analisando a petição inicial da referida ADI (redação da petição), constata-se que o pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade do artigo 59 do Regimento Interno do Senado Federal (Resolução do Senado Federal nº 92 de 1970) e do artigo 5º, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução da Câmara dos Deputados nº 17 de 1989).

            Na exordial da ADI 6524 requereu-se a interpretação conforme à Constituição Federal de 1988 de dispositivos dos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O autor da ADI pretende que os artigos das respectivas resoluções sejam interpretados de acordo com o art. 57, §4º, da Constituição Federal, que tem a seguinte redação:

§ 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 50, de 2006) (grifo nosso).

            O art. 59 do Regimento Interno do Senado tem praticamente a mesma redação do §4º, art. 57, da CF/88, não coincidindo apenas o termo recondução, que lá na resolução tem o termo reeleição em seu lugar:

Art. 59. Os membros da Mesa serão eleitos para mandato de dois anos, vedada a reeleição para o período imediatamente subsequente (Const., art. 57, § 4º).

            O art. 5º, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados tem a seguinte reeleição:

Art. 5º Na segunda sessão preparatória da primeira sessão legislativa de cada legislatura, no dia 1º de fevereiro, sempre que possível sob a direção da Mesa da sessão anterior, realizar-se-á a eleição do Presidente, dos demais membros da Mesa e dos Suplentes dos Secretários, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente. (Caput do artigo com redação dada pela Resolução nº 19 de 2012)

§ 1º Não se considera recondução a eleição para o mesmo cargo em legislaturas diferentes, ainda que sucessivas.

            Na exordial da ADI 6524 houve o pedido liminar, que praticamente pleiteou a antecipação do mérito. No pedido de mérito, houve o seguinte pleito:

(b) no mérito, que seja julgado procedente o pedido desta ADI, para conferir, em definitivo, interpretação conforme à Constituição ao artigo 5º e § 1º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do artigo 59 do Regimento Interno do Senado Federal, bem como declarar a inconstitucionalidade de qualquer interpretação contrária ao que dispõe o texto constitucional, nos termos do pedido cautelar.

            Transcrevi acima os artigos da CF/88, dos regimentos internos de cada Casa do Congresso Nacional e o pedido de mérito formulado na exordial da ADI 6524 para sabermos exatamente o que foi pleiteado, ou seja, qual o real objeto da ação direta de inconstitucionalidade, já que não podemos confirmar nas notícias de jornal.

            E o que é o pedido de interpretação conforme a constituição? Em síntese, é quando se pede para o STF interpretar uma norma jurídica de acordo com o texto constitucional. Na ADI 6524 pediu-se ao Supremo que interprete o art. 59 do Regimento Interno do Senado Federal (Resolução do Senado Federal nº 92 de 1970) e o artigo 5º, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados em conformidade com a norma contida no texto do art. 57, §4º, da Constituição Federal.

            O vice-presidente da República, o ex-general Amilton Mourão, afirmou, na imprensa, que o Supremo tem o “arbítrio para interpretar da forma que melhor lhe aprouver”.

            Então, a pergunta suscitada pela ADI 6524 é a seguinte: a Corte Constitucional sofre algum limite na interpretação do texto constitucional?

            Inicialmente, afirma-se que o limite interpretativo das Cortes Constitucionais é a própria Constituição do Estado. Isto é, o Tribunal Constitucional não pode julgar contra a Constituição, ou afirmar aquilo que não está previsto no texto da Carta Magna.

            A interpretação da Constituição, através do controle concentrado de constitucionalidade, é um instrumento importante no Estado de Direito para trazer segurança jurídica e estabilidade nas relações jurídicas entre o Estado e os cidadãos, e entre os cidadãos em suas relações privadas.

            Assim, a interpretação judicial, em especial a feita pela Suprema Corte de um país, deve ser algo que traga segurança jurídica, apresentando ao Estado e aos cidadãos os marcos jurídicos balizadores para as suas respectivas atuações.

            Atribuo como causa do alargamento da interpretação no STF, que muitas vezes parece ir além e/ou contra a Constituição Federal, ao neoconstitucionalismo. Este é um movimento doutrinário que pretendeu reformular o constitucionalismo tradicional, inserindo uma maior “liberdade” na interpretação axiológica da constituição.

            Eis uma síntese do que defende o neoconstitucionalismo:

O neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implementação de um Estado Democrático Social de Direito. Ele pode ser considerando como um movimento caudatário do pós-modernismo. Dentre suas principais características podem ser mencionados: a) positivação e concretização de um catálogo de direito fundamentais; b) onipresença dos princípios e de regras; c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva. (MOURA AGRA, Walber de, 2018).

            Percebe-se, da leitura do trecho acima transcrito, que o neoconstitucionalismo permite, ao magistrado, atribuir aos princípios e regras uma força maior, maior até mesmo do que o contido na própria norma constitucional positivada. Possibilita, ainda, inovações hermenêuticas.

            Assim, o neoconstitucionalismo é um marco teórico que atribui ao juiz uma maior liberdade na interpretação das normas jurídicas. Porém, não existe liberdade absoluta. Não é possível defender a ausência de limitações à atividade hermenêutica do juiz, sob pena da instalação de uma enorme insegurança jurídica, pois, sob o pretexto da busca de uma concretização de um catálogo de direito fundamentais, o arbítrio judicial poderá ser uma realidade perigosa.

            As consequências práticas da eventual adoção permanente do neoconstitucionalismo pelo STF (pelo menos pela maioria dos seus integrantes) serão extremamente danosas, pois nem a Constituição Federal será mais limitadora da atividade hermenêutica. Isso causará danos imensuráveis, com a implementação definitiva da insegurança jurídica, pois os demais operadores do direito e cidadãos ficarão sem saber o que esperar da interpretação da CF/88 pelo seu guardião, já que será possível sempre a criação de inovações hermenêuticas pelos membros do STF.

            E essa postura hermenêutica não ficará restrita ao STF, podendo ser imitada pelos tribunais estaduais quando do exercício do controle concentrado de constitucionalidade de normas legais e infralegais em face das constituições estaduais. Imaginem o tamanho do problema.

            Se a constituição não for o principal limite do julgador judicial, o Poder Judiciário exercerá funções de Poder Constituinte originário ou reformador, atribuições que ele não tem.

            Somente o poder constituinte originário não possui limites, pois implementa uma nova ordem jurídica constitucional, fundando ou refundando o Estado. As demais funções do Estado (Poder Executivo, Poder Judiciário e Poder Legislativo) são limitadas pelas normas constitucionais. Extrapolar os limites das suas respectivas funções, constitucionalmente previstas, é um ato inconstitucional, que deve ser sustado pelos demais poderes, dentro da previsão de cada constituição.

            Conforme defendido por Rousseau, em sua tese da tripartição das funções estatais prevista na obra “O Contrato Social” (1762), o Estado é um só, porém as funções do poder estatal são repartidas em três: Legislativo (função de elaborar as leis), Executivo (função de executar as leis, gerindo a coisa pública em favor dos cidadãos) e Judiciário (aplicar a lei ao caso concreto, dirimindo conflitos). Pela teoria dos freios e contrapesos, as funções estatais clássicas, repartidas por três órgãos estatais, têm o objetivo de evitar eventual abuso de cada um dos exercentes de cada função, contrabalanceando o exercício real de poder por cada uma dessas funções estatais.

            Retomando, agora, o ponto central da ADI 6524, sobre a aplicação conforme dos artigos acima mencionados dos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, verifico o art. 57, §4º, da CF/88. O texto é bastante claro e não demanda um grande esforço hermenêutico, acreditando que basta a aplicação da interpretação literal para se extrair a vontade do legislador constitucional.

            Nessas situações, isto é, da interpretação literal, para retirar qualquer eventual dúvida e distorções da minha parte, costumo chamar minha filha Luiza, de 10 anos de idade, para me ajudar. Nesse caso pedi para ela ler o art. 57, §4º, da CF/88, e me dizer o que entendeu. Ela, prontamente, disse que é proibida a recondução/reeleição para o mesmo cargo na eleição imediatamente seguinte, ou em suas palavras “é proibido que alguém seja reconduzido para o mesmo cargo na eleição seguinte”. E ainda arrematou, “qual a dúvida nisso papai? Você faltou à aula de interpretação de texto na escola?”.

            Pois é Luiza, ninguém deveria ter dúvidas sobre isso, já que o texto constitucional é extremamente claro e não há sentidos ocultos a serem extraídos da redação do art. 57, §4º, da Carta da República Federativa do Brasil.

            Interpretar o art. 57, §4º, da CF/88, de forma diversa da que está claramente expressa no seu texto, é um ato que extrapola a competência constitucional do STF atribuída pela própria CF/88. Acrescentar sentidos, ampliando ou restringindo o alcance de cada termo do texto do §4º, do art., 57, da CF/88, que manifestamente não estão presentes na norma constitucional (não há dedução lógica possível para a supressão da vedação de recondução para o mesmo cargo na eleição subsequente), é uma interpretação que fere todas as regras hermenêuticas tradicionais, que resultará em uma interpretação inconstitucional que consolidará a abertura da caixa de pandora, da qual sairá todos os males do exercício de um poder sem a limitação constitucional.

            O julgamento da ADI 2564 não foi concluído ainda no Plenário Virtual (06/12/2020). Espero que o colegiado conclua o julgamento com o respeito à Constituição Federal, da qual devem ser seus guardiões. Porém, o simples fato de ter quatro ministros favoráveis (pelo menos até a data de hoje: 06/12/2020) à alteração arbitrária do texto constitucional já é assustador e significa que continuaremos sem saber o que poderá advir do STF no futuro.

Voto Ministro Marco Aurélio

Voto Ministro Gilmar Mendes

Voto Ministro Nunes Marques

P.S.: Trata-se de artigo de opinião. Abordagem preliminar das teorias menciondas no texto, típica de artigos de blog. O escopo do presente artigo é de fazer uma análise inicial sobre o problema apresentado em forma de pergunta no artigo, reconhecendo o autor que a matéria desafia uma análise mais detalhada em futuro artigo científico sobre hermenêutica constitucional da Suprema Corte brasileira.

P.S2.: Deixem as opiniões e críticas nos comentários.

P.S.3: após a publicação deste artigo, o julgamento no STF chegou ao fim. Resultado: 6×5 para afirmar que não é possível a recondução para o mesmo cargo na eleição subsequente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Leia também:

Max Weber no Brasil no período eleitoral

O Estado pode obrigar a população a tomar vacina?

Acompanhe o Tema 1120 do STF, clique aqui.

Voto Ministro Marco Aurélio

Voto Ministro Gilmar Mendes

Voto Ministro Nunes Marques

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Publicado no blog Guedes & Braga.

Luiz Guedes da Luz Neto

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2001). Mestre em Direito Econômico pela UFPB (2016). Aprovado no concurso de professor substituto do DCJ Santa Rita da UFPB (2018). Aprovado no Doutorado na Universidade do Minho/Portugal, na área de especialização: Ciências Jurídicas Públicas. Advogado. Como advogado, tem experiência nas seguintes áreas : direito empresarial, registro de marcas, direito administrativo, direito constitucional, direito econômico, direito civil e direito do trabalho. Com experiência e atuação junto aos tribunais superiores. Professor substituto das disciplinas Direito Administrativo I e II e Direito Agrário até outubro de 2018. Recebeu prêmio de Iniciação à Docência 2018 pela orientação no trabalho de seus monitores, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação/UFPB. Doutorando em direito na UFPB.

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