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Há ainda esperança no mundo jurídico em relação à manutenção dos direitos fundamentais em período de pandemia?

Há ainda esperança no mundo jurídico em relação à manutenção dos direitos fundamentais em período de pandemia?

         Desde que começou a epidemia do COVID-19, também conhecido como vírus chinês, temos presenciado um ataque frontal e incessante aos direitos fundamentais dos cidadãos.

         Nos últimos 15 (quinze) dias o Brasil tem presenciado um movimento organizado entre vários governadores de várias regiões para o endurecimento dos denominados lockdowns, inclusive com a previsão, em decretos, de toque de recolher, subvertendo totalmente o ordenamento jurídico.

         Esses decretos são eivados de inconstitucionalidades formais e materiais, pois não é possível limitar o deslocamento das pessoas (bem como suprimir ou limitar outros direitos fundamentais) sem a decretação prévia do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio. Os governadores não têm competência constitucional para tanto, cabendo apenas ao presidente da república a decretação de Estado de Defesa ou de Sítio.

         Tenho informado, em alguns artigos, sobre a existência desses vícios insanáveis constantes nos decretos estaduais que preveem toque de recolher, proibição de funcionamento de estabelecimentos comerciais e de prisão pelo descumprimento das medidas constantes nos decretos estaduais.

         Tive conhecimento de uma decisão judicial, proferida no Estado de São Paulo, que relaxou a prisão em flagrante de um cidadão que foi preso em seu trabalho. Para tanto, foram utilizados princípios constitucionais ainda em vigor e frontalmente desrespeitados por vários governadores e prefeitos Brasil afora.

         Para entender o caso, transcreverei alguns trechos da decisão judicial aludida:

De acordo com a capitulação jurídica atribuída pela autoridade policial, a conduta do preso, consistente em manter seu estabelecimento comercial aberto, em desobediência à “determinação do Governo Estadual”, que ordenou o fechamento do comércio na chamada “Fase Emergencial” da pandemia de Covid-19, e ter incitado outros comerciantes a fazerem o mesmo, teria caracterizado os crimes definidos nos artigos 268, 286 e 330 do Código Penal.

         Constata-se que um cidadão foi preso porque, de acordo com a autoridade policial (entendimento infelizmente também adotado pelo ministério público posteriormente), teria insistido em manter o estabelecimento comercial aberto e teria, também, incitado outros comerciantes a fazer o mesmo.

         O magistrado assim expôs o seu entendimento sobre a matéria:

[…]

A Constituição da República, em seu art. 5º, reconhece, entre outros, os direitos fundamentais, inerentes à dignidade humana, à propriedade (caput), ao livre exercício do trabalho, ofício ou profissão (inciso XIII), à intimidade, à vida privada e à honra das pessoas (inciso X) e à livre locomoção no território nacional em tempo de paz (inciso XV).

Conforme ressabido, de acordo com os artigos 136 e 137 da Magna Carta brasileira, as únicas hipóteses em que se podem restringir alguns dos direitos e garantias fundamentais são os chamados Estado de Defesa e o Estado de Sítio, cuja decretação compete ao Presidente da República, com aprovação do Congresso Nacional, nos termos dos mesmos dispositivos constitucionais citados.

Atualmente, não vigora nenhum desses regimes de exceção no Brasil, de modo que o direito ao trabalho, ao uso da propriedade privada (no caso, o estabelecimento comercial) e à livre circulação jamais poderiam ser restringidos, sem que isso configurasse patente violação às normas constitucionais mencionadas. (grifo meu)

Veja-se que nem a lei poderia fazê-lo, porque, não havendo decreto presidencial, aprovado pelo Congresso Nacional, reconhecendo Estado de Defesa ou Estado de Sítio e estabelecendo os limites das restrições aplicáveis, tal lei seria inconstitucional.

No presente caso, o que ocorre é mais grave: tal proibição foi estabelecida por decreto do Poder Executivo.

O decreto governamental é instrumento destinado exclusivamente a conferir fiel cumprimento à lei; presta-se unicamente a regulamentá-la. Não lhe é permitido criar obrigações não previstas em lei (o chamado “decreto autônomo”).

É o que decorre do art. 5º, inciso II, da Constituição da República, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Portanto, o decreto em que se fundou a prisão do indiciado, pelas razões até aqui expostas, é manifestamente inconstitucional, e, portanto, nulo de pleno direito, de modo que os elementos imprescindíveis à caracterização dos tipos penais imputados pela autoridade policial ao indiciado – “determinação do poder público” (art. 268 do CP), “prática de crime” (art. 286 do CP) e “ordem legal” (art. 330 do CP) evidentemente não se concretizaram no caso em análise.

De fato, como admitir: (1) que um decreto do Poder Executivo, cujo teor viola francamente o texto constitucional, possa ser considerado validamente uma “determinação do poder público”; (2) que seu descumprimento possa ser considerado “prática de crime”; e (3) que a ordem emanada de funcionário público para seu cumprimento seja uma “ordem legal”?

Admiti-lo equivaleria à total subversão do ordenamento jurídico.

O fato praticado pelo indiciado, portanto, é notoriamente atípico.

Não bastasse, o Supremo Tribunal Federal já decidiu com bastante clareza, na ADI 6341 (Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Edson Fachin), que as medidas adotadas pelas autoridades governamentais no combate à pandemia de Covid-19 devem ser devidamente justificadas, obedecer aos critérios da Organização Mundial da Saúde e gozar de respaldo científico.

[…]

Ora, estudos científicos, nacionais e estrangeiros, a exemplo daqueles desenvolvidos por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco[1], pela Universidade de Stanford[2] e pela revista científica britânica Nature3, têm demonstrando a ineficácia de medidas como as estabelecidas nos decretos governamentais em questão, ou do chamado lockdown, na contenção da pandemia.

E a Organização Mundial da Saúde já apelou aos governantes para que deixem de usar o lockdown, medida que “tem apenas uma consequência que você nunca deve menosprezar: torna os pobres muito mais pobres”[3]

Qual, então, o respaldo do decreto governamental, no qual se fundou a prisão do indiciado, diante da Constituição da República, da decisão do Supremo Tribunal Federal pertinente ao tema, das orientações da Organização Mundial da Saúde e da ciência?

Absolutamente nenhum.

Ante o exposto, dada a manifesta ilegalidade da prisão em flagrante do indiciado, determino seu imediato RELAXAMENTO, com fulcro no art. 5º, inciso LXV, da Constituição da República, e no art. 310, inciso I, do Código de Processo Penal.

Expeça-se alvará de soltura.

Reconhecida a ilegalidade da prisão em flagrante, por consequência, deve ser reconhecida também a ilegalidade da apreensão dos bens pertencentes ao indiciado, descritos no auto de exibição e apreensão de fls. 14/15.

Determino, pois, a imediata restituição dos referidos bens apreendidos indevidamente.

Expeça-se o necessário.

Cumpra-se.

Intimem-se.

Ribeirão Preto, 17 de março de 2021.

Giovani Augusto Serra Azul Guimarães

Juiz de Direito

         Ler a decisão parcialmente transcrita acima traz uma certa esperança de que uma parcela do poder público ainda consegue interpretar as leis e normas infralegais em consonância com os princípios constitucionais insculpidos na Constituição Federal vigente.

         Lendo a decisão supramencionada, fiquei um pouco mais tranquilo, pois pensava que estava sozinho sustentando a mesma tese defendida pelo magistrado Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, da Comarca de Ribeiro Preto, estado de São Paulo, quando escrevi e publiquei o artigo “Democracia em tempo de pandemia”. Importante parabenizar os agentes públicos que cumprem e fazem cumprir a Constituição.

         Felizmente, parece que não estou sozinho nessa linha de pensamento. Há outros operadores do direito que ainda sabem interpretar a Constituição Federal e aplicar as regras de hermenêutica de forma adequada em um estado democrático de direito.

         Há regras jurídicas preestabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro que precisam ser observadas por todos, em especial pelos agentes públicos.

         É inadmissível a quebra reiterada das normas constitucionais pelos decretos estaduais e municipais. O combate à pandemia não é fundamento para a não observância das normas constitucionais pelos Governos Estaduais e Municipais, em especial o ataque aos direitos fundamentais, que são cláusulas pétreas em nossa Carta Magna.

         Seria importante, para toda a sociedade, que o Ministério Público, quer do Estado de São Paulo, quer dos demais estados da federação, utilizasse as suas prerrogativas para combater o ataque à Constituição perpetrado por vários governadores e prefeitos brasileiros.

Também é de fundamental importância que a sociedade cobre/exija, do poder público, o respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal; caso contrário será mera letra morta.

         A história segue e vejamos adiante como esse problema jurídico será tratado pelo Poder Judiciário, em especial nas instâncias superiores.

         Uma pergunta precisa ser respondida pelos poderes da república: as normas constitucionais têm eficácia concreta e imediata, em especial as que versam sobre direitos fundamentais dos cidadãos, ou servem apenas para figurar como adorno na lei magna?

Clique aqui para ler a decisão judicial na íntegra.


[1] https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3706464

[2] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/eci.13484

[3] https://frontliner.com.br/oms-condena-lockdown-nao-salva-vidas-e-torna-os-pobre-muito-mais-pobres/

Leia também:

Democracia em tempo de pandemia

O Século XXI como supressor de direitos fundamentais?

Nelson Rodrigues, as doenças respiratórias e as aglomerações.

[rock-convert-pdf id=”3592″]

Artigo publicado no Blog Guedes & Braga

Luiz Guedes da Luz Neto

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2001). Mestre em Direito Econômico pela UFPB (2016). Aprovado no concurso de professor substituto do DCJ Santa Rita da UFPB (2018). Aprovado no Doutorado na Universidade do Minho/Portugal, na área de especialização: Ciências Jurídicas Públicas. Advogado. Como advogado, tem experiência nas seguintes áreas : direito empresarial, registro de marcas, direito administrativo, direito constitucional, direito econômico, direito civil e direito do trabalho. Com experiência e atuação junto aos tribunais superiores. Professor substituto das disciplinas Direito Administrativo I e II e Direito Agrário até outubro de 2018. Recebeu prêmio de Iniciação à Docência 2018 pela orientação no trabalho de seus monitores, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação/UFPB. Doutorando em direito na UFPB.

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