Reforma administrativa – Segunda Parte: o novo artigo 37 da Constituição Federal

Reforma administrativa – Segunda Parte: o novo artigo 37 da Constituição Federal

Reforma administrativa – Segunda Parte: o novo artigo 37 da Constituição Federal

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 32/2020, encaminhada pelo governo federal ao Congresso Nacional, no início de setembro de 2020, apresenta algumas novidades ao Direito Administrativo, a começar pela redação do caput do art. 37 da Constituição Federal – CF/88.

A atual redação do aludido artigo é a seguinte:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

A PEC 32/2020, no seu art. 1º, propõe a seguinte redação:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de quaisquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, imparcialidade,
moralidade, publicidade, transparência, inovação, responsabilidade,
unidade, coordenação, boa governança pública, eficiência e
subsidiariedade e, também, ao seguinte:

Pela simples redação da proposta de emenda constitucional, percebe-se a inclusão de novos princípios constitucionais da administração pública, entre eles: transparência, inovação, responsabilidade,
unidade, coordenação, boa governança pública.

Na justificativa da PEC, o Ministro da Economia, assim se manifesta:

O novo serviço público que se pretende implementar será baseado em quatro princípios: a) foco em servir: consciência de que a razão de existir do governo éservir aos brasileiros; b) valorização das pessoas: reconhecimento justo dos servidores, com foco no seu desenvolvimento efetivo; c) agilidade e inovação: gestão de pessoas adaptável e conectada com as melhores práticas mundiais; e d) eficiência e racionalidade: alcance de melhores resultados, em menos tempo e com menores custos.

Ainda de acordo com o Ministro da Economia, o projeto de Emenda Constitucional tem três grandes orientações:

[…] (a) modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação; (b) aproximar o serviço público brasileiro da realidade do país; e (c) garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.

Não é garantia de mudança imediata no mundo fático a inserção de princípios no texto constitucional, porém é um passo importante para a mudança cultural no mundo jurídico.

O mundo do direito é mais tradicionalista, avesso às mudanças ou modernizações, em especial o ramo do Direito Administrativo.

O primeiro eixo balizador, nas palavras do Executivo, que eu prefiro chamar de princípio, é o de modernizar o Estado. Dentro desse conceito, consta na justificativa da PEC 32 o seguinte:

“busca-se estabelecer uma política de gestão de pessoas ágil, adaptável e conectada com as melhores práticas internacionais, bem como viabilizar dinâmica de relacionamento com órgãos e entidades públicos a com a iniciativa privada de forma a contribuir com mais efetividade para o atendimento da demanda por serviços públicos”.

Pela leitura da proposta, a modernização abarcará a forma de contratação de pessoal do serviço público, cujo principal acesso continuará sendo através do concurso público, porém apresenta a figura do processo seletivo simplificado, bem como prevê cinco tipos de vínculos jurídicos com a Administração Pública:

  1. vínculo de experiência;

2. vínculo por prazo determinado;

3. cargo com vínculo por prazo indeterminado;

4. cargo típico de Estado;

5. cargo de liderança e assessoramento.

O vínculo de experiência é uma espécie de estágio probatório, porém como estapa do concurso para ingresso em cargo por prazo indeterminado ou em cargo típico de Estado.

O vínculo por prazo determinado, como o próprio nome já indica, será para a contratação de pessoal para necessidades específicas e com prazo certo. Deverá atender aos seguintes requisitos: necessidade temporária decorrente de calamidade pública, de emergência, de paralização em atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço; atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; atividades ou procedimentos sob demanda.

O vínculo por prazo indeterminado é aquele para cargos que desempenham atividades contínuas, excetuando as atividades típicas de Estado, abarcando atividades técnicas, administrativas ou especializadas.

Cargo típico de Estado é aquele que tem como atribuição o desempenho de atividades próprias de Estado, que são sensíveis, estratégicas e que representam o poder do Estado.

Cargo de confiança abarca os atuais cargos em comissão e as funções de confiança, bem como outras posições que justifiquem a criação de “um posto de trabalho específico com atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”.

A obrigação de transparência da administração pública foi positivada na PEC 32/2020, tornando-se um dos princípios constitucionais. Interessante a inserção da transparência no caput do art. 37 da CF/88, pois, apesar de já estar previsa em lei, muitos gestores públicos não a cumprem de forma adequada. Basta uma pesquisa nos sites institucionais de várias prefeituras brasileiras, câmara de vereadores, Assembleias Legislativas etc, para constatar o não cumprimento da transparência.

Talvez a inserção da transparência como princípio constitucional possa ajudar na criação e efetivação da cultura da transparência, pois o poder público deve prestar contas à sociedade (Legislativo, Executivo e Judiciário), pois, além de ser financiador das funções estatais, o poder advém do povo, consoante a própia CF/88.

Há a introdução do princípio da imparcialidade. De acordo com o projeto da PEC, este princípio não se confunde com o princípio da impessoalidade, da seguinte forma:

Se a impessoalidade traduz o dever ético de o agente público se conduzir de modo íntegro em relação às pessoas envolvidos no processo, a imparcialidade traduz esse mesmo dever, porém em relação à matéria sob tratamento. Trata-se de exigir que todo agente público, no exercício do seu mister funcional, se conduza de modo absolutamente imparcial, ainda que possua valorações internas pré-concebidas a respeito do tema sob exame.

Entendo que são princípios complementares. Enquanto que o princípio da impessoalidade determina que a administração pública desenvolve as suas atividades sem vinculá-las à pessoa do gestor, o princípio da imparcialidade deve nortear a administração para evitar tratamento diverso em razão do destinatário do serviço público, evitando assim, tratamento “especial” em função do administrado. Pelo menos essa é a teoria e o norte a ser buscado pela administração pública.

O princípio da inovação é uma inserção interessante, pois em linha com o momento atual em todo o mundo. Só se fala em inovação, que as pessoas precisam se adaptar às inovações decorrentes da reformulação de processos produtivos ou do emprego de tecnologias da informação.

O Estado brasileiro não pode ficar de fora disso. No sentido da PEC 32/2020, o objetivo é de possibilitar a modernização das relações entre o poder público e a sociedade. Não sabemos ainda o que isso significa exatamente, pois o texto da PEC não traz o conceito de inovação, deixando-o em aberto para preenchimento pelos órgãos que irão aplicar a norma, bem como para a interpretação do Poder Judiciário, que irá, em última instância, preencher o conteúdo normativo desse princípio constitucional, caso seja aprovada a PEC 32/2020.

Se o princípio da inovação possibilitar a digitalização dos serviços públicos prestados pelo Estado brasileiro, já terá cumprido uma grande parte do seu papel, pois possibilitará o acesso a vários serviços a todo e qualquer cidadão que tenha acesso à internet, a exemplo do que aconteceu na Estônia, país que saiu da Cortina de Ferro e que hoje está bem ranqueado no índice de liberdade econômica.

Se o Brasil realmente quiser entrar na OCDE, a diminuição da burocracia e a digitalização dos processos administrativos são passos fundamentais nesse sentido.

O princípio da responsabilidade não é algo novo no Direito Administrativo brasileiro, pois os servidores públicos (lato senso considerados) são responsáveis pelos seus atos nas seguintes esferas: civil, administrativa e criminal. O princípio apenas positiva na Constituição Federal o que antes era previsto em normas infraconstitucionais.

O princípio da unidade, dentro da justificativa da PEC32/2020, confesso que não compreendi muito bem. Informa, na justificativa, o que se entende pelo referido princípio: “quando um agente público está atuando, qualquer que seja a matéria, o momento ou o lugar, sua atuação somente será legítima se estiver dirigida a alcançar as finalidades da Administração”.

Entendo tal princípio da seguinte forma: a administração pública deve ser considerada uma só, sendo dividida em órgãos para facilitar a gestão e a prestação dos serviços públicos.

O princípio da coordenação, de acordo com a justificativa, tem por objetivo “entrosar as atividades da Administração, de modo a evitar a duplicidade de atuação, a dispersão de recursos, a divergência de soluções e outros males característicos de uma burocracia framentada”. Interessante princípio, que, na minha opinião, dialoga diretamente com o princípio da eficiência inserido no art. 37 desde a EC 19/1998.

Coordenar para evitar duplicidade de atuação e uso não racional de recursos públicos é algo desejado pelos administrados, pois são dos tributos pagos por estes que a Administração Pública retira os recursos financeiros para o seu funcionamento.

O princípio da subsidiariedade visa a valorização do cidadão e das instâncias próximas a ele. Isto é, de forma preferencial as instâncias mais próximas do cidadão devem resolver as questões apresentadas pelo indivíduo, atuando o ente de maior abrangência de forma subdisidária. De acordo com a justificativa do projeto, isso valoriza o caráter do federalismo.

Princípio da boa governança. Consoante a justificativa da PEC 32/2020, este princípio “preceitua que, no exercício do poder, seja posto em prática o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução das políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.

A máquina pública deve funcionar tendo como objetivo a boa prestação de serviço ao cidadão, que deve ser o centro de toda atuação administrativa. Conseguindo tirar esse princípio do papel, toda a sociedade ganhará com uma Administração Pública pensada e desenhada para apresentar serviços eficientes para os administrativos, com o uso racional de recursos públicos.

Em termos de princípios, a PEC 32/2020, enviada ao Congresso Nacional, inseriu princípios interessantes tanto para a própria Administração Pública, quanto para os administrados, que são o público/clientes da máquina estatal.

Como dito acima, não basta a inserção dos mencionados princípios no texto constitucional. Porém, tal introdução é importante como um primeiro passo, um primeiro momento para a construção de uma cultura estatal de aprimoramento do serviço público, tão importante para a sociedade.

O serviço público bem organizado, eficiente, que busque a inovação, bem gerido para evitar desperdício de recursos financeiros, é de suma importância para toda a sociedade.

A colocação dos novos princípios no art. 37 da CF/88 é o primeiro passo. Porém, há a necessidade de toda uma caminhada para a absorção desses novos princípios pela Administração Pública que, pelo princípio da unidade, deve funcionar em toda a sua estrutura visando o bem comum, a boa prestação de serviços à sociedade brasileira.

Há, sem dúvida, órgãos da administração pública que prestam serviços de ótima qualidade. Mister que os bons exemplos sejam replicados para os demais órgãos dos três entes da federação.

A mudança cultural da sociedade e, por conseguinte, também da administração pública, é um processo lento e contínuo, pois a melhoria da qualidade dos processos de trabalho é um movimento contínuo, diário, com revisão constante dos atos e processos que precisam ser melhorados.

A doutrina brasileira de direito administrativo ainda irá se posicionar sobre os novos princípios, se aprovados forem. E, se aprovados, o tempo demonstrará a real eficácia dos princípios constitucionais no dia a dia da Administração Pública, em especial os insertos no novo artigo 37 da Constituição Federal.

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Para ler os principais pontos da Reforma Administrativa, parte I, clique aqui.

Para acessar o texto da PEC 32/2020, clique aqui.

About Post Author

Luiz Guedes da Luz Neto

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2001). Mestre em Direito Econômico pela UFPB (2016). Aprovado no concurso de professor substituto do DCJ Santa Rita da UFPB (2018). Aprovado no Doutorado na Universidade do Minho/Portugal, na área de especialização: Ciências Jurídicas Públicas. Advogado. Como advogado, tem experiência nas seguintes áreas : direito empresarial, registro de marcas, direito administrativo, direito constitucional, direito econômico, direito civil e direito do trabalho. Com experiência e atuação junto aos tribunais superiores. Professor substituto das disciplinas Direito Administrativo I e II e Direito Agrário até outubro de 2018. Recebeu prêmio de Iniciação à Docência 2018 pela orientação no trabalho de seus monitores, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação/UFPB. Doutorando em direito na UFPB.

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  • ODILON ROCHA

    Tudo muito bonito, ótimas intenções e tal.
    Como já dissestes, inserir princípios na Constituição por si só nada garante; principalmente em um país que nem sequer cumpre MINIMAMENTE a sua Carta Magna.
    Além disso, temos a cultura da impunidade. Uma doença bastante enraizada. Sim, para mim é uma doença.
    Princípio da moralidade em uma Constituição que tem mais direitos do que deveres e conceitos abertos, onde predominam interpretações nitidamente de cunho marxista, é bastante paradoxal.
    A moral, no sentido dos bons exemplos, práticas, vida saudável, bons princípios, começam em casa e são, sim, complementarizados na Educação, com um ensino ético, verdadeiro e de qualidade, sem Ideologia. Ao que parece, o Governo não está muito interessado.
    Enfim, creio que a tentativa seja válida. No entanto, acho estranho a inserção de alguns princípios, como se pudessem ser alcançados ou praticados de forma antinatural.
    Não estaria faltando um princípio da meritocracia?
    Seria um tremendo estímulo para a carreira, principalmente para os que já possuem, de forma natural, muitos dos princípios ali “estabelecidos”.
    Meritocracia que, insisto, começa na Educação, em uma fase que a criança e o adolescente precisam absover valores. Valores dos cidadãos que estarão nos cargos que se está a exigir tais princípios.
    Era isso.

    • guedesebraga

      Olá Odilon. Interessante a sua observação. O princípio da meritocracia poderia ter sido acrescentado. E seria um bom acréscimo. Por que não colocar?

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