Ray Bradbury e Dostoiévski. “Fahrenheit 451”, “Memórias do Subsolo” e o antídoto contra qualquer totalitarismo
Ray Bradbury e Dostoiévski. “Fahrenheit 451”, “Memórias do Subsolo” e o antídoto contra qualquer totalitarismo
Assistindo à nova versão de “Fahrenheit 451” observei com satisfação a cena onde uma “subversiva” entrega o livro “Memórias do subsolo”, de Dostoiévski, a um “Fireman” (Bombeiros que devem destruir os livros).
A partir da leitura dessa obra, o personagem de nome Guy Montag (“fireman”) passa a se questionar sobre a sua profissão e o porquê do ódio aos livros.
Ray Bradbury, autor do conto, que já virou filme mais de uma vez, disse que o escreveu para demonstrar seu amor aos livros e para alertar como a cultura literária seria substituída pelo audiovisual, o que acarretaria danos ao conhecimento humano.
A obra dele guarda consonância com o “Admirável mundo novo” de Huxley e o “1984” de Orwell.
No futuro distópico de Bradbury, a sociedade de escravos vem com a destruição dos livros determinada por um comando totalitário, tecnológico, científico e determinista.
Realmente, a perda da capacidade de ler boas obras literárias pode levar a diversas formas de escravidão.
À beira de um possível Grande Reset (em que os livros são alvos em potencial), “Fahrenheit 451” não deixa de ser profético.
Contudo, a chama da liberdade trazida no conto de Bradbury, iniciada com o personagem Guy Montag, a partir da leitura de Dostoiévski, pode ser espalhada para todos na vida real.
O genial russo, em “Memórias do subsolo”, escreveu sobre a liberdade e o determinismo e de como o ser humano, a partir de sua intrínseca capacidade de ser livre, pode escapar de qualquer totalitarismo:
“(…) Ah! ah! ah! mas a vontade é coisa que não existe, vós me interrompeis, rindo. A ciência já conseguiu tão bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade, o livre-arbítrio não passam de…” (…)
(…) São precisamente os seus sonhos mais fantásticos, é a sua asnice mais vulgar, o que ele pretenderá conservar, unicamente para provar a si mesmo (como se isso fosse verdadeiramente necessário) que os homens são homens e não teclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, é verdade, as leis da natureza, que tocam de resto com tal brio que muito em breve não será possível querer seja o que for sem se referir aos calendários. E depois, mesmo que se achasse que o homem não passa realmente de uma tecla de piano, se se chegasse a lhe demonstrar isso matematicamente, mesmo nesse caso ele não tomaria juízo e cometeria alguma incongruência, apenas para marcar bem a sua ingratidão e perseverar no seu capricho. E, no caso, em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruição, no caos, desencadearia não sei que males, mas não faria senão o que lhe desse na cabeça. Lançaria sua maldição sobre o mundo, e como só ao homem é dado a amaldiçoar (isto é um privilégio seu, que o distingue dos outros animais) alcançaria assim os seus fins, isto é, convencer-se-ia de que é um homem e não uma peça.
Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldições, que tudo isso também pode ser calculado de antemão, se bem que a simples possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará assim uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só terá um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar-se completamente louco.
Isso é óbvio para mim; eu vos garanto, pois parece claro desde todos os tempos a grande preocupação do homem foi provar sem cessar, a si mesmo, que ele era um homem e não uma engrenagem
(…)” (Excertos de “Memórias do Subsolo” de Dostoiévski)
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Publicado no Blog Guedes & Braga
# Ray Bradbury e Dostoiévski