Sobre responsabilização civil por omissão | Caso China e Pandemia 2020 | Parte I

Sobre responsabilização civil por omissão | Caso China e Pandemia 2020 | Parte I

Sobre responsabilização civil por omissão | Caso China e Pandemia 2020 | Parte I

            Nos últimos dias surgiu na internet a ideia de responsabilizar a China pela pandemia mundial do coronavírus. No início não dei muita atenção à ideia, porém, com o tempo, aparentemente sobrando durante a quarentena, resolvi pensar a respeito.

            A pergunta que eu faço é a seguinte: a China é responsável pela pandemia do coronavírus que hoje assola praticamente todos os continentes, crise essa que ceifará milhares de vidas e provavelmente provocará uma crise econômica sem precedentes?

            De início descarto a ideia de que a China tenha agido com dolo, ou seja, de forma intencional para espraiar o vírus pelo mundo todo. Não se trata, então, de responsabilidade por ação, ou, como se menciona no meio jurídico, de ato comissivo.

            Porém, há várias notícias recentes informando que o governo chinês, quando soube do vírus, ainda no final do ano de 2019, não agiu adequadamente e, pior, prendeu quem ousou manifestar-se de forma clara sobre a periculosidade do aludido vírus, enquadrando as pessoas que tentavam alertar autoridades e o povo chinês sobre o perigo do vírus como traidores da pátria.

Sobre a notícia de prisão de dissidente, clique aqui. Prisão de jornalista na China, clique aqui. Ativistas desaparecidos na China, clique aqui.

            Minha filha Luiza, de nove anos de idade, defende a ideia de que só há a responsabilidade por atos comissivos, não podendo ela sofrer as consequências pelas suas omissões, que, na idade delas não são graves e não provocam danos a terceiros (por exemplo, deixar de arrumar a cama, deixar de escovar os dentes toda vez que se alimenta etc.). Vejamos o que diz a respeito a ciência jurídica, especialmente a parte do direito civil que fala sobre responsabilidade civil.

            O Código Civil brasileiro afirma que:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (grifo meu).

            O artigo acima transcrito trata da responsabilidade civil daquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outro, comete ato ilícito.

            A primeira conclusão é que existe responsabilização por omissão voluntária que cause dano material ou moral.

            O primeiro requisito/pressuposto, qual seja, a conduta, foi mencionado acima.

            O segundo requisito/pressuposto é o dano. Só tem sentido responsabilizar alguém se houver dano. Em não havendo dano, não tem sentido discutir responsabilização de alguém. Vale observar que o dano pode ser material (prejuízos financeiros, danos em bens) e/ou imaterial (danos à imagem, à saúde).

            O terceiro e último requisito/pressuposto é o nexo causal. E o que é isso? É o liame entre o agente (autor por ação ou omissão) e o dano decorrente da conduta.

            Havendo os três requisitos, há a responsabilização do agente causador do dano, de acordo com o art. 186 do Código Civil brasileiro.

            O artigo legal supratranscrito tem respaldo na doutrina de direito civil, nacional e internacional. Doutrina essa que remonta à Roma Antiga: Tábua VII – “Se alguém destruir algo de alguém será obrigado pelo juiz a reconstruir ou restituir tal coisa”. Trata-se da origem, para o Ocidente, da responsabilidade civil (Lei das Doze Tábuas).

            O conceito de responsabilidade civil é bem apresentado por Rui Stoco, a seguir:

A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana (STOCO, 2007, p. 114).

            Responsabilidade civil, para outro civilista brasileiro, é

a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam” (RODRIGUES, 2003, p. 6).

            Assim, para a doutrina civilista, a responsabilidade civil é a obrigação de reparar o dano causado a outrem, quer por fato próprio, ou por fato de terceiros (filhos, empregados) e coisas que do agente dependam, conforme a lição sempre precisa de Sílvio Rodrigues.

            E o que diz a Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, sobre o dever que os povos têm entre si?

            Transcreve-se abaixo alguns dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 1º. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade (grifo meu).

[…]

Artigo 3º. Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (grifo meu).

[…]

Artigo 8º. Toda pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei (grifo meu).

[…]

Artigo 28. Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração (grifo meu).

[…]

Artigo 30. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados (grifo meu).

            Indivíduos e nações têm a sua responsabilidade pela efetivação e manutenção dos direitos universais, dos direitos humanos universais, conforme se depreende dos artigos acima transcritos da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela ONU em 1948. E essa obrigação de observância dos Direitos Humanos Universais não pode ser rejeitada por nenhum Estado, não podendo qualquer Estado se entregar à atividade ou a praticar ato com o objetivo de destruir os direitos mencionados na referida declaração.

            Todos “devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade (art. 1º), possuindo toda pessoa “direito a recurso efetivo […] contra os atos que violem os direitos fundamentais” (art. 8º), pois todos têm “direito à vida […] e à segurança pessoal” (art. 3º). Além disso, “toda a pessoa tem direito a que reine, […] plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos […] enunciadas na presente Declaração (art. 28). E, por fim, “nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, […] o direito de se entregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados” (art. 30).

            Esse é o espírito que moveu os Estados-nacionais com assento na ONU quando, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada.

            Depois do exposto acima, confrontando legislação e teoria (doutrina civilista), o que podemos concluir sobre a conduta dos governantes chineses?

            Em havendo a China, através dos seus representantes, negligenciado os cuidados no combate à propagação do vírus em sua população, bem como ocultado dados importantes para a comunidade internacional, só podemos concluir pela responsabilização da China (pessoa jurídica de direito internacional) pelos prejuízos humanos e materiais causados aos demais países assolados pela pandemia e suas respectivas populações e empresas (pessoas naturais e jurídicas).

            Ademais, parece que o ato não se limitou à negligência no combate ao vírus e na comunicação à comunidade internacional. Segundo várias notícias, a China, que não é um país democrático (basta lermos os relatórios anuais que analisam a liberdade nos países ao redor do globo), perseguiu e prendeu todos aqueles profissionais que tentaram alertar as autoridades e pessoas sobre o perigo deste vírus.

            Assim sendo, em uma análise preliminar, por omissão (não alertou as demais nações sobre o vírus e sua rápida disseminação, número de doentes e de mortes, não adotou, desde que o início do problema, as medidas sanitárias devidas) a China colocou não só os seus nacionais, mas toda a comunidade internacional em risco.

            Além disso, tudo indica que a China, pela conduta dos seus dirigentes, infringiu dos Direitos Humanos Universais, pois, com a sua omissão, expôs toda a Humanidade ao risco de uma pandemia, não observando o dever de fraternidade entre os povos, bem como não observou que o Estado deve se abster de qualquer conduta que venha a infringir os direitos humanos elencados na declaração. E o direito fundamental presente na referida declaração é o direito à vida, previsto no art. 3º.

            Há de se pensar na responsabilidade de uma nação perante as outras, em especial no mundo atual, cujos meios de transporte são vetores de contaminação, que, em pouco tempo, transformam uma epidemia local em uma pandemia, de resultados ainda não contabilizados, tanto em termos de perda de vidas humanas, quanto na crise econômica pós-crise pandêmica.

            Em outro texto tentarei analisar a legitimidade ativa para demandar contra a China (ou qualquer outro país que possa colocar o mundo em risco), se somente o Estado-nação tem legitimidade para ingressar com uma ação, ou se pessoas físicas e empresas também teriam tal legitimidade.

Para quem quiser consultar (referências):

Declaração Universal dos Direitos Humanos, clique aqui.

Código Civil de 2002, clique aqui.

Lei das Doze Tábuas, clique aqui.

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7 ed.. São Paulo Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Para ler sobre a necessidade de adoção de medidas econômicas para minimizar a crise do corona vírus, clique aqui.

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Luiz Guedes da Luz Neto

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2001). Mestre em Direito Econômico pela UFPB (2016). Aprovado no concurso de professor substituto do DCJ Santa Rita da UFPB (2018). Aprovado no Doutorado na Universidade do Minho/Portugal, na área de especialização: Ciências Jurídicas Públicas. Advogado. Como advogado, tem experiência nas seguintes áreas : direito empresarial, registro de marcas, direito administrativo, direito constitucional, direito econômico, direito civil e direito do trabalho. Com experiência e atuação junto aos tribunais superiores. Professor substituto das disciplinas Direito Administrativo I e II e Direito Agrário até outubro de 2018. Recebeu prêmio de Iniciação à Docência 2018 pela orientação no trabalho de seus monitores, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação/UFPB. Doutorando em direito na UFPB.

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