Direito, política e ilusão: pandemia COVID-19

Direito, política e ilusão: pandemia COVID-19

Direito, política e ilusão: pandemia COVID-19

         A pandemia do COVID-19 colocou as pessoas em uma situação de extrema vulnerabilidade, mas não apenas em relação ao vírus. A vulnerabilidade dos cidadãos também foi gerada pela reação governamental à pandemia.

         Em nome do bem comum, vários governantes fecharam as fronteiras dos países, proibiram a entrada de estrangeiros, vedaram a circulação de pessoas nos territórios municipais e estaduais, requisitaram bens de empresas, impuseram o uso de máscaras faciais, fecharam o comércio, entre outras medidas.

         Alguns afirmam que o governo pode suprimir direitos porque fala em nome do bem comum, e, por essa razão, as leis e decretos emanados do governante visam sempre o bem comum. Isso é verdade? Para responder a esta pergunta, invoco os ensinamentos de Tomás de Aquino[1], na Suma Teológica, artigo II, da Questão 90: “Se a lei é sempre ordenada ao bem comum”.

         Perquirindo a essência da lei, Santo Tomás de Aquino, no artigo II da questão 90, analisa se a lei seria sempre ordenada ao bem comum. Apresenta Tomás de Aquino as seguintes proposições[2]:

No que concerne ao segundo artigo, assim se procede.

1 – Parece não ser a lei sempre ordenada ao bem comum como a seu fim. Com efeito, pertence à lei preceituar e proibir. Ora, os preceitos ordenam-se para certos bens singulares. Portanto, nem sempre o fim da lei é o bem comum.

2 – Além disso, a lei dirige o homem para agir. Ora, os atos humanos são da esfera do particular. Portanto, ordena-se também a lei a certo bem particular.

3 – Além disso, diz Isidoro no Livro das Etimologias (II, cap. 10, Pl. 82, 130): “Se a lei se estabelece pela razão, será lei tudo o que for estabelecido pela razão”. Ora, a razão estabelece não só o que se ordena ao bem comum, mas também que se ordena ao bem privado. Portanto, a lei não se ordena só ao bem comum, mas também ao bem privado de um só.

Em sentido contrário, há o que diz Isidoro no Livro V das Etimologias, cap. 21, P.L. 82, 203: É a lei escrita “em vista da utilidade comum dos cidadãos e não do interesse privado”.

         Aquino[3] afirma que a lei, como produto da razão humana, deveria perseguir o bem, a felicidade, e, para sustentar a sua afirmação, menciona Aristóteles, sobre as disposições legais justas: “chamamos de disposições justas, legais, as que produzem a felicidade e as partes desta, para a comunidade política” (Ética, v. cap. 1, 1129, b.17).

         Apregoa, ainda, que “é da razão da lei humana ser ordenada para o bem comum da cidade”[4]. Até este momento, Aquino se refere ao dever-ser da lei humana.

         No opúsculo do “Governo dos príncipes ao rei de Cipro”, Tomás de Aquino preceitua que “se, contudo, o governo se ordenar, não ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do regente, será injusto e perverso o governo”[5].

         Pelo pensamento de Tomás de Aquino acima transcrito, conclui-se que no mundo do dever-ser, a lei deveria se dirigir ao bem comum. Porém, quando derivada de um governo injusto e/ou perverso, o conteúdo da lei não visará ao bem comum do povo, mas ao bem privado do regente.

         Destarte, nem sempre a lei visa o bem comum, em especial as normas jurídicas oriundas de governos injustos, que visa o bem privado do regente, ou do grupo mais próximo a este, do que o bem comum do povo.

         Quanto à primeira afirmação do senso comum dos apoiadores de qualquer governante, nem sempre as suas disposições são dirigidas ao bem comum do povo, ou como diz Aquino, ao bem comum da multidão.

         Outros afirmam que o governante tem legitimidade para dizer o que é o bem comum porque foi eleito pelo povo. O governante eleito tem sim legitimidade para governar, pois recebeu o mandato dos eleitores, que são o povo, e deste o poder é emanado, de acordo com o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal[6]. Porém o mandato recebido do povo não é ilimitado, devendo ser exercido em favor da população, do povo, devendo as normas jurídicas emanadas dos governantes conter disposições que visem o bem comum do povo e não o governo se ordenar “ao bem privado do regente”, conforme exposto por Santo Tomás de Aquino. Desta forma, pode-se também concluir que o governante só age de forma legítima se ordenar as suas ações ao bem comum do povo. Caso contrário, age de forma ilegítima, mesmo tendo sido eleito.

         Outros tantos defendem a ideia de que o poder público sempre busca o bem comum. Nessa categoria insiro as autoridades públicas que não são eleitas pelo voto popular. A legitimidade dessas advém do texto constitucional, este elaborado pelo povo através de seus representantes na Constituinte. E, por esta razão, a legitimidade dos seus atos também é delimitada, só sendo legítimas as suas ações se ordenadas ao bem comum do povo.

         Então, de tudo o que foi exposto até aqui, conclui-se que nem tudo que advém de uma autoridade pública visa o bem comum. Porém, as ações ilegítimas, pois não buscam o bem comum, podem ser fantasiadas de legítimas através da ilusão criada pela política e efetivada pelo direito. E que ilusão seria essa?

         Na verdade, são várias as ilusões. Uma delas é a de que aquele ato, mesmo que externamente ele se manifeste como arbitrário e desproporcional, é direcionado ao bem comum da coletividade. Exemplo: fechar o comércio e eleger de forma arbitrária quais atividades seriam consideradas essenciais e, como tais, poderiam funcionar durante a pandemia, mesmo que isso significasse grande circulação de pessoas nos interiores dos estabelecimentos comerciais essenciais.

         Uma outra ilusão é a de saber qual conduta deve ser seguramente adotada diante de um fato novo. Isto é, mesmo a pandemia do corona vírus sendo algo novo, as autoridades sanitárias estaduais e municipais, através dos meios de comunicação, afirmavam ao povo saber exatamente o que deveria ser feito. Como isso é possível? Somente através da criação da ilusão de saber o que é melhor para o povo e que estavam agindo dessa forma fundados na ciência? Mas, em qual ciência? Na ciência que o governante declarasse ser verdadeira pelos critérios arbitrários por ele (ou por sua equipe que, no final das contas, reflete a vontade do gestor maior).

         A outra ilusão é afirmar que a economia poderá ser recuperada facilmente depois de passada a pandemia e que mais importante do que a economia é a vida. Claro que a vida é importante, ninguém questiona isso e parar a discussão nesse nível é promover um debate raso e simplista de uma situação complexa.

          A economia funciona para o país como a saúde funciona para o indivíduo. O indivíduo não tendo saúde, não conseguirá fazer as suas atividades diárias costumeiras. O país com economia combalida não consegue se recuperar em prazo curto ou médio, levando, a depender do grau da debilidade, de décadas para a sua recuperação, o que significará condenar gerações ao subemprego, à fome, à miséria, pois a geração de riqueza foi duramente atacada pelas políticas equivocadas de isolamento total da população quando deveriam ter isolado os doentes e contaminados, através da realização de testagem em massa. Provocar a quebra econômica do país afeta sim a saúde das pessoas, não só a saúde atual, mas também a futura, pois sem recursos financeiros as pessoas não poderão se tratar, alimentar-se adequadamente e, com isso, a qualidade e a expectativa de vida serão bem afetadas.

         Não há instrumento melhor para implantar a ilusão criada pela política do que o direito. Este, pela sua força cogente, obriga a todos, prevendo, ainda, punição para aqueles que não obedecerem aos preceitos das normas jurídicas.

         E através do direito o estado exerce o seu monopólio da força, da violência, empregando a força do direito para impor obrigações e vedar determinadas condutas. Quando a violência estatal é empregada de forma legítima, é um meio de pacificação social. Porém, empregada de forma arbitrária e ilegítima, é causa de sofrimento do povo.

         E, diante da criação das ilusões mencionadas e de diversas outras, os estados e municípios brasileiros, através do próprio direito, solaparam os direitos fundamentais contidos na Constituição Federal de 1988, sob o argumento de que estariam fazendo aquilo em favor do bem comum da sociedade.

         Ainda sob o pálio do bem comum, vários estados e municípios adquiriram materiais hospitalares sem licitação pública pagando por eles cifras irreais, que qualquer administrador de pouca experiência desconfiaria depois de uma simples análise da proposta.

         Tudo indica que mais fatos lamentáveis como esses surgiram nos próximos meses com o andamento de várias investigações policiais. E o somatório da violação de direitos fundamentais mais a aquisição fraudulenta de materiais hospitalares (entre outras medidas na área de saúde) apontarão para governos que não visaram o bem comum, mas sim que utilizaram da pandemia como um pretexto para alcançar, sem nenhum pudor, o bem particular do governante e do seu grupo de apoio. Vergonhoso isso. Espera-se que um dia os brasileiros aprendam a defender os seus direitos e a cobrar que os governantes cumpram o seu papel constitucional, que é governar em favor da população, buscando sempre o real bem comum.

P.S.: Sugiro a leitura integral dos textos de Santo Tomás de Aquino mencionados neste texto de opinião. Leitura prazerosa e riquíssima.

P.S.2: Leia também: Ciência, positivismo científico e causalidade. A questão do tratamento de uma doença sem comprovação científica

P.S.3: Sugiro a leitura também de “A pandemia e os defensores da ciência”.


[1] AQUINO, Tomás Santo. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. ISBN 85.326.1523-6, p. 37

[2] Ibidem, p. 37-38.

[3] Ibidem, p. 38.

[4] Ibidem, p. 94.

[5] Idem. Do governo dos príncipes ao rei de Cipro. São Paulo: EDIPRO, 2013, p. 30.

[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>> . Acesso em 17 de julho de 2020.

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Luiz Guedes da Luz Neto

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2001). Mestre em Direito Econômico pela UFPB (2016). Aprovado no concurso de professor substituto do DCJ Santa Rita da UFPB (2018). Aprovado no Doutorado na Universidade do Minho/Portugal, na área de especialização: Ciências Jurídicas Públicas. Advogado. Como advogado, tem experiência nas seguintes áreas : direito empresarial, registro de marcas, direito administrativo, direito constitucional, direito econômico, direito civil e direito do trabalho. Com experiência e atuação junto aos tribunais superiores. Professor substituto das disciplinas Direito Administrativo I e II e Direito Agrário até outubro de 2018. Recebeu prêmio de Iniciação à Docência 2018 pela orientação no trabalho de seus monitores, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação/UFPB. Doutorando em direito na UFPB.

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