Lockdown na Paraíba | Decreto constitucional?
O governador do Estado da Paraíba decretou o lockdown no Estado da Paraíba pelo período de 1º a 14 de junho de 2020. Ao invés de utilizar a palavra lockdown, preferiu o governador utilizar o termo “isolamento social rígido”. E utilizou esse último termo não porque é a tradução da expressão inglesa, mas por esta não encontrar apoio na sociedade. Mudar o rótulo não muda o conteúdo da norma.
Quando li o Decreto nº 40.289, de 30 de maio de 2020, a primeira pergunta que me veio à cabeça foi: esse decreto é constitucional?
O Brasil é um estado democrático de direito, pelo menos é o que preceitua o art. 1º, caput, da Constituição Federal.
Então, para ter fundamento de validade, toda e qualquer norma jurídica precisa estar de acordo com o texto constitucional, com os princípios constitucionais, senão não produz efeitos válidos no ordenamento jurídico brasileiro.
Antes de analisarmos a eventual inconstitucionalidade do Decreto Estadual nº 40.289, de 30 de maio de 2020, importante relembrar à população que as medidas de isolamento social, iniciadas em 18 de março de 2020, foram adotadas na tentativa de “achatar” a curva de propagação do corona vírus enquanto o Poder Executivo preparasse e instalasse os leitos de internação específicos para o tratamento da COVID-19. Passados mais de 80 (oitenta) dias do início da quarentena, a imprensa tem noticiado que quase nada foi feito pelo Poder Executivo.
Diante da ineficiência do Poder Executivo, este mesmo poder decretou o lockdown, ou o isolamento social mais rígido como prefere o governo do Estado, confirmando o que está sendo noticiado pela mídia, ou seja, que não há leitos instalados para a COVID-19 no número prometido pelo Poder Executivo desde março de 2020.
Se realmente houvesse uma preocupação verdadeira com o bem estar da população, o governo do estado da Paraíba deveria ter planejado a compra de equipamentos e demais insumos desde o começo do ano, pois a decretação de emergência global ocorreu em 30 de janeiro de 2020 pela Organização Mundial de Saúde – OMS, e, em 11 de março de 2020, aconteceu a elevação do estado de alerta mundial de emergência global para pandemia.
Assim, se a real preocupação do Estado Paraibano fosse a saúde pública, teria começado a se planejar de forma efetiva desde 1º de fevereiro de 2020. E quando digo planejar de forma efetiva, isso não se resume apenas à realização de quarentena forçada (isolamento social), compra de equipamento de médicos e de insumos médico-hospitalares de fornecedores que não entregam o produto vendido, mas sim de um verdadeiro planejamento visando o art. 37, caput, da Constituição Federal, ou seja, buscando a eficiência, a economicidade, a legalidade, o bem público, de forma efetiva, concreta, e não apenas no discurso.
É inadmissível que um gestor público, que como o próprio nome diz, gere recursos públicos advindos dos tributos pagos pela população, não saiba fazer um planejamento eficaz e colocá-lo em prática, parecendo um simples amador quando compra equipamento (respiradores) de um fornecedor que simplesmente não os entrega.
Mas voltemos ao Decreto nº 40.289/2020. O art. 1º dispõe que as medidas gerais de contenção à disseminação da COVID/19 abrange os municípios de João Pessoa, Alhandra, Bayeux, Caaporã, Cabedelo, Conde, Santa Rita e Pitimbu, no período de 1ºa 14 de junho, e consiste no “controle da circulação de pessoas e veículos nos espaços e vias públicas, objetivando reduzir a velocidade de propagação da doença”.
O art. 2º menciona as medidas excepcionais e temporárias a serem adotadas dentro dessa política de lockdown:
Art. 2° Para fins da política de isolamento social rígido a que se refere o art. 1°, deste Decreto, serão adotadas, excepcional e temporariamente, as seguintes medidas:
I – dever especial de confinamento;
II – dever especial de proteção por pessoas do grupo de risco;
III – dever especial de permanência domiciliar;
IV – controle da circulação de veículos particulares;
V- controle da entrada e saída do município.
O art. 3º do aludido decreto menciona que as pessoas comprovadamente infectadas ou com suspeita de contágio, deverão permanecer em confinamento obrigatório em domicílio, em unidade hospitalar ou em outro lugar determinado pela autoridade de saúde.
Por que não faz a testagem em massa da população para identificar quem está infectado e poder isolar esta pessoa ao invés de obrigar o isolamento compulsório de toda a população? Uma pergunta que merece ser respondida à população paraibana.
Por esse artigo, a autoridade de saúde, que não consegue sequer equipar as unidades de saúde para receber infectados pela COVID-19, é quem determinará o local do confinamento obrigatório dos comprovadamente infectados ou suspeitos de contágio.
O parágrafo único afirma que a não observância do caput do art. 3º ensejará a responsabilização, nos termos do decreto, “inclusive na esfera criminal, observado o tipo previsto no art. 268, do Código Penal”. Esse tipo penal tem uma pena abstrata de 01 (um) mês a (01) ano e multa, sendo, portanto, crime de menor potencial ofensivo, não ensejando prisão imediata de pessoas primárias e de bons antecedentes, que serão liberadas pelo delegado após a assinatura do termo de compromisso para comparecer ao Juizado Especial Criminal.
O art. 5º, caput, estabelece o dever geral de permanência domiciliar nos municípios de João Pessoa, Alhandra, Bayeux, Caaporã, Cabedelo, Conde, Santa Rita, e Pitimbu.
O §1º do art. 5ª menciona a vedação de circulação das pessoas em espaços e vias públicas, bem como em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, com as seguintes ressalvas:
I – o deslocamento a unidades de saúde para atendimento médico;
II – o deslocamento para fins de assistência veterinária;
III – o deslocamento para o trabalho em atividades essenciais ou em estabelecimentos autorizados a funcionar na forma dos decretos estaduais e municipais vigentes;
IV – circulação para a entrega de bens essenciais a pessoas do grupo de risco;
V – o deslocamento para a compra de materiais imprescindíveis ao exercício profissional;
VI – o deslocamento a quaisquer órgãos públicos, inclusive delegacias e unidades judiciárias, no caso da necessidade de atendimento presencial ou no de cumprimento de intimação administrativa ou judicial;
VII – o deslocamento a estabelecimentos que prestam serviços essenciais ou cujo funcionamento esteja autorizado nos termos dos decretos estaduais e municipais vigentes;
VIII – o deslocamento para serviços de entregas;
IX – o deslocamento para o exercício de missão institucional, de interesse público, buscando atender a determinação de autoridade pública;
X – a circulação de pessoas para prestar assistência ou cuidados a idosos, a crianças ou a portadores de deficiência ou necessidades especiais;
XI – o deslocamento de pessoas que trabalham em restaurantes, congêneres ou demais estabelecimentos que, na forma da legislação estadual e dos decretos municipais, permaneçam em funcionamento exclusivamente para serviços de entrega e retirada de alimentos;
XII – o trânsito para a prestação de serviços assistenciais à população socialmente mais vulnerável;
XIII – deslocamentos para outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados.
O § 3º do art. 5º prevê que a fiscalização do cumprimento do lockdown será objeto de ostensiva fiscalização por agentes da “Polícia Civil, da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e do Departamento Estadual de Trânsito – DETRAN, das guardas municipais e dos órgãos de trânsito municipais, ficando o seu infrator submetido à devida responsabilização, na forma deste Decreto”.
O §4º do art. 5ª prevê a utilização do sistema de videomonitoramento à disposição da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social – SSPDS, das secretarias municipais de segurança urbana, ou dos órgãos de fiscalização de trânsito, estadual e municipal. Esta parte pareceu muito com o monitoramento realizado pelo estado totalitário descrito no livro 1984 de George Orwell, no qual o “Grande Irmão” monitorava todos a toda hora.
O art. 6º prevê o monitoramento de veículos particulares nas vias públicas dos municípios elencados no art. 1º do decreto estadual.
O art. 7º estabelece o controle de entrada e saída de pessoas e veículos nos municípios mencionados no art. 1º do decreto analisado.
O art. 8ª menciona a proibição de aglomeração em espaço público, e no parágrafo único, há a proibição de circulação de pessoas em locais os espaços públicos, “salvo quando em deslocamentos imprescindíveis para acessar as atividades essenciais previstas neste Decreto”.
Parece que com a intenção de compelir a observância do Decreto nº 40.289/2020, no art. 10, caput, há uma sutil “ameaça estatal” de que o descumprimento do referido decreto sujeitará o infrator à “responsabilização cível, administrativa e criminal, nos termos da lei”.
No parágrafo único do art. 10, o Decreto Estadual afirma que “para definição e dosimetria da sanção, serão observadas a gravidade, as consequências da infração e a situação econômica do infrator”. Para a população em geral que chegar a ler esse decreto, até parece que o Poder Executivo tem competência constitucional para definir e dosar a sanção de suposta infração criminal.
E no art. 12 o Estado da Paraíba, não ligando para a autonomia dos municípios na federação brasileira, utiliza o verbo “dever” para afirmar que os municípios de “João Pessoa, Alhandra, Bayeux, Caaporã, Cabedelo, Conde, Santa Rita, e Pitimbu deverão editar decretos municipais reproduzindo o conteúdo aqui tratado”, e, vai além, o disciplinamento a ser adotado pelos municípios mencionados podem ser mais restritivos do que as matérias tratadas no decreto estadual.
Eis, em suma, os principais pontos do Decreto nº 40.289/2020, que instituiu o lockdown na região metropolitana da cidade de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba, como “remédio” para a ineficiência do Poder Executivo Estadual e nos Municípios da Grande João Pessoa em planejar e implementar um projeto de compra de insumos (EPI, medicamentos etc.) e de equipamentos médico-hospitalares para a instalação de leitos (normais e de UTI) de internação para os infectados pela COVID-19.
A Constituição Federal prevê a restrição da circulação de pessoas e veículos apenas em duas situações: estado de defesa e em estado de sítio. E até onde eu saiba, não foi instituído, pelo Presidente da República, o estado de defesa ou o estado de sítio. Nessas duas situações excepcionais é que cabe restrição aos direitos de reunião (art. 136, §1, I, CF/88),
Interessante mencionar que o estado de sítio tem prazo de duração: 30 (trinta) dias, podendo ser prorrogado uma vez por igual período, se as razões da sua instituição persistirem. O estado de sítio instituído como sucedâneo do estado de defesa que não foi suficiente, também tem o prazo de até 30 (trinta) dias, “nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior” (Art. 138, § 1º, CF/88).
O art. 139 da CF/88 elenca quais medidas podem ser adotadas durante o estado de sítio:
Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
I – obrigação de permanência em localidade determinada;
II – detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;
III – restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;
IV – suspensão da liberdade de reunião;
V – busca e apreensão em domicílio;
VI – intervenção nas empresas de serviços públicos;
VII – requisição de bens.
Grifei os incisos que mais interessam à presente análise para uma comparação com o decreto estadual que instituiu o lockdown. A obrigação de permanência em uma localidade determinada e a suspensão da liberdade de reunião só pode ser decretada em um estado de sítio. Fora dessa situação, qualquer decretação de permanência em uma localidade determinada e a suspensão da liberdade de reunião é inconstitucional, sendo, portanto, o Decreto nº 40.289/2020, do Governo do Estado da Paraíba, inconstitucional, não devendo produzir efeitos desde o seu nascedouro.
É preciso ficar claro que, mesmo em situações excepcionais de calamidade pública, o poder público precisa obedecer à Constituição Federal, estando a administração pública obrigada a cumprir as normas constitucionais sob pena de invalidade dos seus atos.
Seria salutar para o Estado Democrático de Direito que o Ministério Público intentasse as medidas judiciais cabíveis para a declaração da inconstitucionalidade desse decreto, com pedido de tutela de emergência, para sustar de imediato os efeitos desse decreto inconstitucional. A população paraibana precisa também da atuação urgente e imediata do Ministério Público para verificar o real motivo da decretação do lockdown.
O que mais me espanta não é a elaboração e publicação de um decreto estadual como o acima comentado, mas sim a aceitação passiva da população prejudicada pela ineficiência estatal, que, por não ter conseguido gerir o bem público de forma eficiente, gera danos imensuráveis à população, seja pela morte sem a devida assistência na rede pública hospitalar por ausência de condições materiais, quer pela imposição de falência às micros, pequenas e médias empresas que empregam a maior parte da mão de obra paraibana.
Talvez se o povo paraibano souber dos seus direitos constitucionais, comece a cobrar os seus direitos diretamente ao governador do estado e aos prefeitos da região metropolitana de João Pessoa. E o local democrático para essa cobrança é a praça pública, porém essa está fechada pelo poder executivo, restando ao povo a cobrança através das redes sociais e, em especial, que as outras instituições democráticas (a exemplo do Ministério Público e do Poder Judiciário) cumpram as suas funções constitucionais para barrar abusos do Poder Executivo.
A depender da ineficiência e da ausência de um planejamento racional estatal, esse lockdown na Paraíba durará indefinidamente pelo período que o Poder Executivo achar conveniente. A população de um estado não pode ficar ao bel prazer da vontade dos seus governantes.
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